Já imaginou ter acesso a textos escritos por pessoas que viveram em São Paulo, alguns deles à mão e com mais de 200 anos? Um trabalho de mestrado do Programa de Pós-Graduação em Filologia e Língua Portuguesa da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP viabilizou uma cooperação entre a Universidade e órgãos do Judiciário que começou a tornar real essa possibilidade.
A iniciativa da então mestranda Ana Carolina Estremadoiro Prudente do Amaral deu origem ao Laboratório de Pesquisa Filológica da Justiça Federal da 3ª Região (Filojus), que promoverá exposições e ações educativas com documentos que escancaram as relações conflituosas da sociedade paulista desde a época do rei Dom João VI até os embates jurídicos mais recentes. Além disso, a colaboração facilitará que pesquisadores de outras áreas descubram o que os processos antigos revelam sobre a história do Brasil, já que um arquivo online disponibilizará a cópia e a transcrição contextualizada dos documentos.
O trabalho é liderado pelos professores de filologia Phablo Roberto Marchis Fachin, Vanessa Martins do Monte e Sílvio de Almeida Toledo Neto, do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da FFLCH. O Arquivo da Justiça Federal dispõe de processos tanto sobre a província de São Paulo, no período imperial e as revoltas do início da República, quanto sobre casos mais recentes, dos anos 1990, que também serão expostos. Trata-se de um acervo com pouca ou nenhuma investigação.
Não é só de textos escritos por juristas que se sustenta o arquivo, como destaca a professora Vanessa. “Em um processo, são encontrados muitos tipos de textos diferentes. Existem os mais jurídicos (petições, certidões, escrituras, cópias e traslados), mas há também textos mais livres, que podem constar como prova processual. O processo é uma miríade de textos e cada um é diferente do outro, porque os temas variam e a maneira de conduzir também.”
As atividades do Filojus começaram em setembro de 2019. Os estagiários, todos do curso de Letras, fazem o tratamento, a higienização e a catalogação do Arquivo Central de Guarda Permanente da Justiça Federal da Seção Judiciária de São Paulo. Os bolsistas são contratados pela Justiça e passam por um treinamento sobre conservação documental com diversos profissionais da área. Como são muito antigos, os documentos são manuseados apenas com luvas e exigem cuidados específicos.
O professor Phablo Fachin esclarece que, mais do que apenas a organização do material, serão realizadas também ações educativas. “Além das exposições, a ideia é receber alunos, tanto da educação básica quanto do ensino superior, para que haja a aproximação com a Justiça e o Tribunal e para que os estagiários apresentem o trabalho que está sendo realizado.” Por conviverem diariamente com o material, os estagiários também participarão da curadoria das exposições. “Conhecer a história da Justiça é conhecer a história de São Paulo, dos agentes e das relações de poder”, enfatiza o professor.
A servidora Carolina Felix da Silva, da Seção de Tratamento Técnico do Acervo de Guarda Permanente da Justiça Federal, justifica a importância da parceria: “Esses documentos já estavam arquivados conosco, mas com o problema do acesso à documentação franqueado pela lei não ser, de fato, disponibilizado. Não existir um tratamento e não existir mesmo uma transcrição desses documentos torna o acesso muito limitado. Por isso, esse tipo de atividade é desempenhado por instituições do ensino como esse convênio”.
O objetivo do Filojus é apresentar para a população o que é um trabalho filológico e o que os processos revelam sobre o que aconteceu em São Paulo desde o século 19. Para isso, os pesquisadores pretendem fazer exposições no saguão do Fórum Pedro Lessa.
O processo mais antigo do Arquivo
Tudo teve início quando Ana Carolina do Amaral, já formada em direito, terminava a graduação em Letras na USP e começava a procurar por um material para seu projeto de pesquisa. Ao ser informada de que a Seção de São Paulo da Justiça Federal possuía um centro de memória, entrou em contato com os funcionários do Arquivo e encontrou uma ação judicial datada de 1821, a mais antiga ainda preservada.
Com esse primeiro contato com os documentos, surgiu o interesse de cuidar do restante do material preservado. O plano de trabalho foi traçado em maio de 2019 e, em junho, além da primeira instância da Justiça Federal, foram incluídos no convênio os arquivos do Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF3), responsável pelos recursos dos casos de Mato Grosso do Sul e de São Paulo.
O processo que Ana Carolina Amaral estudou em seu mestrado, uma ação de execução com penhora de escravizados, trata do não repasse do imposto da meia sisa recolhido em Villa Bella da Princeza, hoje Ilhabela, que recaía sobre toda a transação de escravizados ladinos, termo que designava os escravizados que nasciam em território brasileiro, falavam o português e executavam tarefas domésticas. O imposto começou a ser cobrado a fim de contornar o fim dos ganhos para a coroa desde a proibição do tráfico de escravizados africanos pelo Atlântico. Um dos arrecadadores desse imposto recolheu a quantia, porém não repassou ao sócio caixa que receberia o valor.
Na época, o País era parte do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves e a coroa costumava leiloar impostos atrasados. Quem arrematava se tornava sócio caixa desses contratos e normalmente contratava arrecadadores para fazer as cobranças. Nesse caso em específico, o arrecadador não repassou o imposto da meia sisa ao sócio-caixa, que, por sua vez, ingressou com uma ação de execução para cobrar a dívida. Por fim, foram leiloados três escravizados do devedor para o pagamento do débito.
“Os escravizados realmente eram leiloados. Avaliava-se uma pessoa por idade, se tinha dentes, se tinha todos os dedos para trabalhar. O escravizado mais velho valia menos. Isso é muito chocante, mas ao mesmo tempo é um retrato de que realmente a escravidão aqui no Brasil existiu e que esses escravizados eram tratados como coisa apropriável para outras pessoas”, comenta a pesquisadora, que hoje estuda ações de liberdade de escravizados em seu doutorado na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).
No caso desse documento, também gera curiosidade o fato de que tenha sido encontrado naquele Arquivo, dado que a Justiça Federal começou a funcionar somente 70 anos mais tarde. Embora ela tenha sido criada em 1890, na transição da monarquia para República, ela começou a ser estruturada de fato apenas no ano seguinte. De qualquer forma, esses papéis estão ali, acredita-se, por um acaso ou devido a alguma função que foi absorvida pela Justiça Federal a partir da sua fundação.
Além disso, o processo estava catalogado como uma ação sumária de penhora e constava no site da Justiça Federal de São Paulo com data de 1827. Ao ler o processo, utilizando métodos próprios da filologia, a pesquisadora percebeu que se tratava de uma execução entre partes datada de 1821. “A catalogação disponível [anteriormente] é meramente ilustrativa. Quem vai descobrir [do que se trata] serão os estagiários”, pondera Amaral a respeito da importância do trabalho realizado pelos estudantes de Letras. A aluna defendeu seu mestrado em 2021 e foi orientada pela professora Maria Clara Paixão de Sousa.
Os segredos dos processos centenários
O estudo de um documento antigo, mesmo do ponto de vista jurídico, é muito mais revelador quando há interdisciplinaridade. Os pesquisadores estudam os documentos pensando em quem escreveu, nas motivações da escrita, na própria língua, na história por trás de cada um deles e em outras implicações linguísticas, jurídicas, históricas e culturais. Para isso, esses profissionais investigam inclusive a origem dos papéis utilizados nos documentos e por onde os processos circularam. “Não basta ter acesso ao processo. Muito mais revelador pode ser a história da composição daquele texto”, explica o professor Phablo Fachin.
A etapa inicial dos trabalhos envolve fundamentalmente estudantes do curso de Letras, a fim de quebrar a barreira de leitura dos escritos. Como a história de muitos dos documentos armazenados nesses arquivos ainda não foi contada, futuramente pesquisadores de outras áreas das ciências humanas serão convidados a participar da pesquisa, como historiadores e juristas. A base da investigação, entretanto, é o estudo paleográfico dos textos antigos, dado que muitos deles sequer possuem data. Nessa análise, algumas características da escrita, do papel e algumas referências no texto podem determinar quando o documento foi redigido.
Aproximadamente um terço do acervo disponível no arquivo da Justiça Federal já foi trabalhado, passando por scanners de alta qualidade, mesas digitalizadoras, transcrições e análises. Com esse empenho, será possível desvendar aspectos desconhecidos da história do Brasil e de São Paulo e compreender melhor como a escravidão e o período imperial influenciaram a sociedade até os dias de hoje.
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