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Pesquisa alerta para que se evite fazer relações superficiais entre ideologia e mortes por covid

Cientistas encontraram problemas metodológicos em estudos que buscaram relacionar voto em Jair Bolsonaro em 2018 com os números da pandemia

 01/11/2022 - Publicado há 1 ano     Atualizado: 03/11/2022 as 16:21

Autor: Pedro Ferreira

Arte: Guilherme Castro

O conceito de ideologia possuiu múltiplos significados construídos historicamente. Hoje, pela definição do filósofo italiano Norberto Bobbio, o termo é mais conhecido como um conjunto de ideias e valores filosóficos, políticos e sociais que caracterizam o pensamento e orientam as ações de um indivíduo, sociedade, grupo, movimento ou período histórico. Durante a pandemia de covid-19, observou-se o descumprimento das medidas sanitárias recomendadas pela Organização Mundial da Saúde (OMS) por grupos que apoiavam o presidente Jair Bolsonaro. A partir disso, diversos estudos buscaram relacionar o número de casos e mortes da doença com a ideologia dos indivíduos. Para estudiosas que acompanharam alguns destes trabalhos, a tarefa não é tão simples, e a falta de rigor na pesquisa pode levar a conclusões erradas.

Em um artigo publicado na revista Brazilian Political Science Review, pesquisadoras da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP e da Fundação Getúlio Vargas (FGV) analisaram estudos no tema e identificaram problemas metodológicos na inferência da relação causal entre a ideologia e os números referentes à pandemia. O principal deles foi o uso de inferências ecológicas, quando dados agregados de um grupo ou população são utilizados para inferir comportamentos individuais. Segundo Isabel Seelaender Costa Rosa, mestranda em Ciência Política e coautora do artigo, a ideologia não é um conceito fácil de se medir.

“Mesmo que tivéssemos uma medida satisfatória [para ideologia], ainda assim há dificuldades em tratar desse conceito e traduzi-lo para um comportamento individual em relação à adesão ou não das medidas contra a covid-19.”

Isabel Seelaender Costa - Foto: Reprodução/Twitter

Isabel Seelaender Costa - Foto: Reprodução/Twitter

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De acordo com a pesquisadora, as inferências ecológicas são adequadas para fazer suposições referentes a grupos (ou, no caso, municípios), mas não para inferir informações de indivíduos. O artigo mostra, através de dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), que, tanto em municípios em que Bolsonaro recebeu mais votos, quanto em regiões em que ele perdeu, houve uma grande variação no número de casos e mortes por covid-19. Isso porque, enquanto ocorreu uma concentração geográfica de votos em Bolsonaro, os casos e mortes decorrentes da doença não seguiram um padrão similar.

“O voto da eleição presidencial de 2018 não é a melhor ferramenta para inferir a ideologia individual, já que outros aspectos também influenciaram as posturas perante a pandemia”, explica Isabel Rosa. As diferentes condutas de políticas sanitárias nos níveis municipal e estadual e os perfis socioeconômicos distintos de cada município são fatores que também tiveram papel determinante nos comportamentos observados. Além disso, a medida do voto parte do pressuposto de uma coerência ideológica extrema do eleitor, que não poderia sofrer mudanças ao longo do tempo.

Outros aspectos que dificultam o uso da eleição de 2018 para medir a ideologia individual são as dinâmicas particulares do processo eleitoral e o cenário político da época. Isabel afirma que o comportamento dos eleitores no primeiro turno, quando há maior abertura para o voto a partir da identificação ideológica, tende a ser diferente no segundo, quando os votos são alocados em candidatos majoritários a partir da preferência por um ou outro.

A vitória de Bolsonaro no segundo turno, por exemplo, teve influência da crise política e econômica, rejeição aos políticos tradicionais e da onda de antipetismo, aversão ao Partido dos Trabalhadores (PT). As fake news, além de muito presentes no período eleitoral, se mantiveram durante a pandemia e influenciaram o comportamento individual.

O valor das ciências sociais

“Nas ciências sociais, é preciso ter um rigor metodológico equivalente ao das ciências da saúde”, afirma Lorena Barberia, professora do Departamento de Ciência Política da FFLCH e coautora do estudo. Ela explica que o artigo também propõe uma reflexão sobre a responsabilidade ética dos cientistas políticos e a comunicação com a sociedade. “A ciência de modo geral foi muito valorizada durante a pandemia, mas as ciências sociais foram deixadas de lado e somente agora que estamos perdidos é que elas voltaram a receber a devida importância.”

Lorena G. Barberia - Foto: Reprodução

Lorena Barberia - Foto: Reprodução/Twitter

Para mais informações: e-mail lorenabarberia@usp.br, com Lorena Barberia; e-mail isabel.rosa@usp.br, com Isabel Seelaender Costa Rosa.


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