Golpe científico: os perigos por trás das revistas predatórias

Pesquisadores alertam colegas para armadilha das revistas científicas que lucram publicando artigos sem um adequado processo de revisão

 22/08/2023 - Publicado há 11 meses     Atualizado: 28/08/2023 as 18:11

Convites que chegam por e-mail prometem a publicação de artigos científicos em curto prazo, na maior parte das vezes pedindo pagamento ao autor - Fotomontagem: Jornal da USP - Imagens: Freepik e Flaticon

A história é comum. Você é um pesquisador, se sentindo pressionado a aumentar a produtividade e encorpar seu currículo, e, de repente, recebe um convite de uma revista científica para publicar rapidamente um trabalho. Cuidado com o golpe! Um grupo de cientistas da área de biologia se uniu para alertar o meio acadêmico sobre as consequências de ceder a esse chamado, que costuma chegar por e-mail. Em um artigo na Neotropical Biology and Conservation, eles divulgam dicas de como escapar de convites mal-intencionados e golpes financeiros das editoras predatórias, que publicam sem revisão de pares, ou seja, outros cientistas com expertise no tema estudado. Neste texto, levantamos as orientações principais.

Artigo científico é um trabalho divulgado em uma revista especializada que descreve os resultados de uma pesquisa acadêmica. Antes da publicação, o material passa por múltiplas etapas de verificação dos resultados e da metodologia proposta. O processo, feito por outros cientistas, é chamado de revisão de pares e leva um certo tempo até que o trabalho seja analisado, aprimorado e finalmente publicado. Essa demora, alinhada à realidade do mundo acadêmico, onde publicar uma grande quantidade de artigos pode abrir portas para bolsas, financiamentos e aprovações em concursos, faz com que muitos cientistas sejam enganados e publiquem nas revistas predatórias. O que pode representar um grave risco não só para a trajetória dos acadêmicos, mas também para a comunidade científica e a sociedade como um todo.

De acordo com Cássio Cardoso Pereira, doutorando da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e um dos autores do texto, a atuação de editoras predatórias se concentra, principalmente, no envio de e-mails que prometem a publicação do artigo em um curto prazo – na maior parte das vezes pedindo o pagamento de um valor para tal. “Eles mandam esses e-mails após achar o endereço eletrônico dos autores por meio das redes sociais ou outras publicações. O convite vem acompanhado de elogios, dizendo que o corpo editorial deles já aceitou o artigo ou que não existe a necessidade de revisão”, explica ao Jornal da USP.

Em meio à pressão em se ter muitos artigos – independentemente da reputação da revista onde serão publicados -, os pesquisadores podem se ver enganados por esses falsos atrativos. Para Marco Mello, coautor do texto e professor do Instituto de Biociências (IB) da USP, as publicações predatórias são consequência desta danosa cultura estabelecida entre a comunidade científica, na qual a quantidade é mais importante do que a qualidade do material produzido.

“Desde o momento em que passaram a ser avaliadas por um conjunto de números, as pessoas começaram a sentir uma pressão muito grande para publicar cada vez mais. A ideia é que, se você não publicar no ritmo alucinante que o sistema impõe, você ‘morre’ academicamente”, explica o especialista. Chamada de publish-or-perish (em português, “publique ou pereça”), essa conjuntura é aproveitada por periódicos fraudulentos para lucrar e transformar a ciência em um produto passível de ganhos financeiros. 

Cássio Pereira - Foto: arquivo pessoal

Publish-or-perish

O termo se popularizou no final da década de 1990 em uma tentativa de dar um nome ao ritmo autoimposto pela própria comunidade acadêmica naquele momento. Com a chegada de cada vez mais pessoas à carreira científica, foi se observando uma mudança nos critérios de avaliação – visto que os antigos já não comportam a quantidade de profissionais no campo. É a partir daí que o rendimento acadêmico passou a ser avaliado não por sua qualidade, mas sim pelo número de artigos publicados.

Ao mesmo passo em que o modo de avaliação se alterou, o processo de aprovação dos artigos científicos permaneceu o mesmo: eles passam por uma série de etapas com toda a rigidez científica necessária, e que, por esse motivo, podem ser demoradas. Com isso, a publicação de artigos predatórios passou a se mostrar cada vez mais presente no meio, seja por pesquisadores enganados por organizações fraudulentas, seja por cientistas mal-intencionados, que estão cientes dos problemas gerados.

Para Pereira, o processo de revisão é essencial para que resultados equivocados não sejam divulgados, acarretando consequências para a sociedade.

“Um trabalho que não passou pelo rigor científico é danoso e pode levar a ações incorretas. Quando temos dados equivocados no artigo e ele vem a ser utilizado por tomadores de decisão, obviamente essas decisões vão ser equivocadas.”

Até chegar às páginas dos periódicos, as especificações a serem cumpridas são variadas e já começam antes mesmo de submeter a produção – antes de tudo é preciso adequar o trabalho às diretrizes de formatação e informar dados tanto sobre o estudo quanto sobre o próprio pesquisador. Após o envio, o artigo passa por uma minuciosa análise pela banca revisora da revista, formada por outros cientistas e especialistas, que, por sua vez, realizam comentários e verificam os resultados propostos. Eles ficam responsáveis por avaliar a excelência da pesquisa, analisando tanto a metodologia quanto as conclusões alcançadas – e é aqui que o trabalho pode ser recusado ou aceito.

Caso seja qualificado, o artigo então é verificado pelos editores, que também fazem notas e sugestões. Apenas depois de múltiplas etapas de observação e apuração é que a produção científica pode ser incluída no periódico. De acordo com Mello, a cultura publish-or-perish esvazia a importância de todo esse processo de revisão e desvia a comunidade científica de seu objetivo. “A partir do momento que a publicação científica se tornou uma indústria de ritmo acelerado, a busca por conhecimento e a vontade de traduzir o mundo para a sociedade ficam em segundo plano.”

Como se prevenir

Para escapar de publicações predatórias, os especialistas salientam que, antes de aceitar qualquer convite, é preciso verificar algumas informações sobre o periódico, como a composição da banca editorial e o fator de impacto da revista – índice utilizado para avaliar sua importância dentro de suas áreas de atuação. Calculado a partir da divisão o número de citações dividido pelo número de publicações nos últimos dois anos, essa é uma importante informação que pode identificar um periódico inexistente ou mal-intencionado.

Conversar com outros pesquisadores experientes, professores e orientadores também é um meio de se proteger desse tipo de prática. “É preciso estabelecer um canal de comunicação com os cientistas que acabaram de ingressar na graduação e nos programas de pesquisa. Se os estudantes tiverem uma noção inicial de como o sistema funciona, eles vão saber reconhecer quando um convite é legítimo e quando um convite é predatório”, diz Mello.

Marco Mello - Foto: arquivo pessoal

O próprio envio do convite ao pesquisador pelo e-mail já deve acender o alerta. Isso porque, geralmente, é o pesquisador que manda seu artigo para publicação, não vice-versa. “Pesquisar pelo corpo editorial e averiguar sua composição, pesquisar nas principais bases de dados, utilizar softwares de verificação: é preciso buscar ativamente por pistas de publicação predatória”, afirma Pereira. No texto, os pesquisadores disponibilizaram uma tabela de sites que podem ser utilizados para verificar tais dados.

Sites para verificações de dados

Beall’s list (2008 – 2017)

Editoras e revistas predatórias

Acesso liberado

Buscar Currículo Lattes

Pesquisadores brasileiros

Acesso liberado

Cabell’s list

Editoras e revistas predatórias

Registro necessário

Directory of Open Access Journals (DOAJ)

Revistas científicas de acesso aberto

Acesso liberado

Base de dados do Google Scholar

Pesquisadores

Acesso liberado

Métricas do Google Scholar

Publicações registradas no Google Scholar

Acesso liberado

Base de dados da revista Nature

Instituições

Acesso liberado

Padrão Internacional de Numeração de Livro (ISBN)

Livros

Acesso liberado

Número Internacional Normalizado para Publicações Seriadas (ISSN)

Revistas

Acesso liberado

Banco de dados de relatórios de citações de periódicos

Publicações registradas na Web of Science

Registro necessário

Lista de publicações predatórias

Editoras e revistas predatórias

Registro necessário

ORCID database

Pesquisadores

Acesso liberado

Lista de publicações predatórias

Editoras e revistas predatórias

Acesso liberado

Lista de publicações predatórias

Editoras e revistas predatórias

Acesso liberado

Base de dados do ResearchGate

Instituições, revistas, editoras e pesquisadores

Registro necessário

Base de dados do Scielo

Revistas indexadas no Scielo

Acesso liberado

Base de dados do Scopus

Revistas indexadas no Scopus

Acesso liberado

Base de dados da Web of Science

Pesquisadores

Registro necessário

*Estagiária sob supervisão de Luiza Caires e Valéria Dias

**Estagiária sob supervisão de Moisés Dorado


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