Do canto agressivo ao combate, comportamento territorial ajuda a mapear diversidade de pererecas

Anfíbios da subfamília Hylinae que se reproduzem em lagos competem mais pelo território do que espécies do mesmo grupo que nascem em rios, independente das características físicas

 25/08/2023 - Publicado há 8 meses     Atualizado: 28/08/2023 as 16:50

Texto: Ivan Conterno*

Boana faber - Foto: Marcio Martins

Durante um mesmo dia, um único animal pode percorrer uma grande área em busca de recursos e de parceiros. Para delimitar esses territórios, algumas espécies emitem sons ou mesmo partem para o ataque aos concorrentes. Essa defesa da área onde há recursos que precisam ser defendidos se chama comportamento territorial. De olho nesse aspecto, o pesquisador Ricardo Luría-Manzano, que estuda anfíbios em seu doutorado no Instituto de Biociências (IB) da USP, compilou os dados na literatura científica a respeito dos fatores que levam as pererecas da subfamília Hylinae a defenderem seus territórios e descobriu que as espécies de água parada tendem a ser mais territorialistas.

Um artigo sobre o tema foi lançado na edição de agosto do Journal of Evolutionary Biology, publicado pela Sociedade Europeia de Biologia Evolutiva.

Esse ramo da família das pererecas é o que comporta o maior número dos anfíbios conhecidos no mundo. As mais de 700 espécies são separadas em tribos, das quais foram estudadas cinco: Cophomantini, Dendropsophini, Hylini, Lophyohylini e Sphaenorhynchini.

Grande parte desses bichos aparece em território latino-americano, mas encontrá-los não é tão simples. Diferentemente dos sapos e das rãs, as pererecas costumam viver escondidas sobre árvores e plantas, de onde saem, principalmente, para a reprodução.

Em cinza, o número de espécies conhecidas por exibir cada comportamento territorial; as demais em branco - Gráfico: cedido pelos pesquisadores

Os detalhes evolutivos desse grupo de animais que levam à defesa territorial ainda não eram totalmente compreendidos. Por isso, Ricardo criou uma base de dados com centenas de espécies e suas características, tendo a territorialidade como foco.

O pesquisador precisou reorganizar, em uma única linguagem, os termos que apareciam bastante diferentes em cada fonte de informação. O canto territorial, por exemplo, às vezes é chamado de “canto agressivo” por alguns estudiosos. Os tipos de corpo de água também aparecem com diferentes nomes, mas foram agrupados em água parada ou água corrente pelo pesquisador. Até mesmo o nome das espécies e dos grupos em que elas se encontram aparece diferente em cada livro ou artigo.

Há uma grande variação de características territoriais dentro de um mesmo grupo de pererecas. Mesmo assim, o biólogo, que contou com a parceria de outros pesquisadores da USP e da Unesp, identificou um padrão: espécies que se reproduzem em águas paradas, e não em riachos, tendem a apresentar mais traços de defesa territorial. Isso pode ser explicado pelo fato de que as densidades populacionais são maiores em lagos e poças d’água.

“Ao longo do tempo e do espaço, alguns grupos formaram espécies mais rapidamente do que outros. Detectar quais atributos fazem com que surjam espécies nos grupos e quais atributos fazem com que os grupos se extingam mais rapidamente é um tema da evolução que se estuda muito hoje em dia”, explica Ricardo ao Jornal da USP.

Além do canto agressivo e do combate físico, existem características anatômicas que podem estar associadas à territorialidade, como a diferença de tamanho entre os machos e as fêmeas (dimorfismo sexual). Normalmente, as fêmeas de anfíbios são maiores. Quando o macho tinha o mesmo tamanho, pensava-se que fosse devido à necessidade de proteger um território. No entanto, Ricardo encontrou muitas exceções.

Ricardo Luría-Manzano - Foto: ResearhGate

“Os atributos comportamentais são mais maleáveis ao longo da história evolutiva do grupo e podem ser perdidos mais facilmente.” Isso pode explicar por que algumas características físicas não necessariamente desembocam em um comportamento mais ou menos agressivo. “Nós testamos se o canto territorial e o combate físico estavam associados ao grau de dimorfismo sexual e ao tamanho das espécies, mas não encontramos relação entre esses atributos”, constata o biólogo.

O pesquisador organizou uma planilha com as informações sobre o canto territorial, a agressividade, a presença de espinho no polegar e outras características ecológicas das centenas de espécies. 

Em seguida, ele aplicou um método estatístico para entender se cada comportamento ou estrutura de defesa aparece mais de um vez na mesma linhagem. Com isso, foi possível observar se as características aparecem independentemente da árvore evolutiva ou em espécies que pertencem a um mesmo grupo.

“Nós estamos contribuindo com um arcabouço teórico ao discutir territorialidade não apenas das pererecas, mas como um tipo de comportamento que os animais apresentam, com muitas teorias por trás. Estamos mostrando, por exemplo, que nem sempre os animais são territoriais quando há a tendência de que os machos sejam maiores”, enfatiza o professor do IB Marcio Martins, orientador do estudo.

História evolutiva de 152 espécies da subfamília Hylinae. O círculo interno representa o canto territorial associado a cada espécie, enquanto o externo representa o combate físico. Os pontos pretos indicam as espécies com esses comportamentos já relatados na literatura científica. Onde há pontos cinza, a característica ainda não foi observada. / Boana albopunctata – Foto: Ricardo Luría-Manzano / Dendropsophus microcephalus – Foto: José Luis Aguilar-López) / Dryophytes plicatus (Hylini) – Foto: Ricardo Luría-Manzano / Trachycephalus vermiculatus (Lophyohylini) – Foto: José Luis Aguilar-López)

É sapo ou perereca?

Em seu trabalho de mestrado, o professor do IB estudou o sapo-ferreiro (Boana faber). Embora tenha esse nome, ele é uma perereca, da tribo Cophomantini. Assim como outras espécies da subfamília Hylinae, tem discos nas pontas dos dedos que grudam em superfícies verticais e membranas entre os dedos.

O nome “ferreiro” se deve a um de seus cantos que lembra alguém forjando o ferro com marteladas. Um traço territorial associado à morfologia desses animais comuns em outros hilídeos é um espinho no polegar usado em batalhas contra concorrentes ao acasalamento.

“Em cada fase da agressão há um canto diferente”, conta com detalhes o professor ao Jornal da USP. O sapo-ferreiro constrói um ninho de barro, em torno do qual canta para atrair a fêmea. Se outro macho está a menos de um metro de distância, os dois começam a se “xingar”, emitindo um canto agressivo. 

Normalmente o invasor vai embora. Porém, ficando ali por não haver outro lugar para construir o seu ninho, o outro pula sobre o intruso e emite um canto parecido com o bufar de um gato. Se o penetra persistir, os dois começam a lutar. Espécies briguentas como essas são conhecidas como pererecas gladiadoras, porém elas são uma minoria.

Encontrando padrões

Marcio Roberto Costa Martins - Foto: Marcos Santos/USP Imagens

Ao contrário da teoria estabelecida, os pesquisadores não encontraram evidências de que a defesa territorial evoluiu em condições de escassez de recursos. “Nós usamos a quantidade de chuva do lugar onde cada espécie se distribui como uma medida da quantidade de recursos a serem defendidos, pensando que os recursos que o grupo defende são úteis para a reprodução”, conta Ricardo.

Outro fato que se pensava ser favorável à territorialidade, mas que não foi confirmado, seria o tamanho dos machos. “A hipótese de que o macho dos anfíbios que brigam serem grandes era citada várias vezes na literatura, mas era pouco testada. Parecia ser lógico que o macho fosse maior em espécies territoriais. O resultado do estudo aponta que, na verdade, essa é uma particularidade de alguns grupos, e não um padrão geral”, assinala o professor Marcio Martins ao Jornal da USP.

Os pesquisadores notaram que os grupos de pererecas que usam cantos para defender seus territórios têm maiores taxas de diversificação, enquanto os grupos com gladiadoras têm taxas menores e são mais suscetíveis a serem extintas.

Essa diferença provavelmente é explicada pelo custo associado a cada comportamento. A sistematização desses dados será importante para criar medidas para a conservação das espécies, mapeando quais correm mais risco de extinção de acordo com as vulnerabilidades da própria espécie.

Os anfíbios são importantes consumidores de insetos, que podem ser vetores de doenças como a dengue e a febre amarela. Outras funções ecológicas também têm sido descobertas. Recentemente, pesquisadores constataram que a espécie Xenohyla truncata, da tribo Dendropsophini, pode ajudar a fertilização de flores nas restingas do Rio de Janeiro ao espalhar o pólen das plantas que consome.

O artigo Evolution of territoriality in Hylinae treefrogs: Ecological and morphological correlates and lineage diversification pode ser lido aqui.

Mais informações: e-mails ricardolm@ib.usp.br, com Ricardo Luría-Manzano, e martinsmrc@usp.br, com Marcio Martins

*Estagiário sob supervisão de Valéria Dias e Luiza Caires

**Estagiária sob supervisão de Moisés Dorado


Política de uso 
A reprodução de matérias e fotografias é livre mediante a citação do Jornal da USP e do autor. No caso dos arquivos de áudio, deverão constar dos créditos a Rádio USP e, em sendo explicitados, os autores. Para uso de arquivos de vídeo, esses créditos deverão mencionar a TV USP e, caso estejam explicitados, os autores. Fotos devem ser creditadas como USP Imagens e o nome do fotógrafo.