Novo estudo comprova que a covid-19 grave é uma doença trombótica

Em artigo publicado no Journal of Applied Physiology, pesquisadores da USP mostram que o dano causado pelo sars-cov-2 ao revestimento de pequenos vasos pulmonares é um fenômeno determinante para o agravamento da doença

 09/10/2023 - Publicado há 7 meses

Texto: Maria Fernanda Ziegler*

Arte: Gabriela Varão**

Fotomontagem: Jornal da USP - Fotos: Scientificanimations/Wikimedia Commons/CC BY-SA 4.0 e CDC/Wikimedia Commons/Domínio Público

A trombose em pequenos vasos (capilares) do pulmão é uma das primeiras consequências da covid-19 grave, precedendo até mesmo a dificuldade respiratória decorrente do chamado dano alveolar difuso. Foi o que comprovou um estudo brasileiro publicado este mês no Journal of Applied Physiology. A partir da autópsia de nove pacientes que morreram após desenvolver a forma grave da doença, foi possível observar um quadro muito característico, envolvendo alterações na vascularização pulmonar e trombose.

No trabalho, os pesquisadores descrevem, pela primeira vez, aspectos relacionados ao dano endotelial e à formação de trombos ocasionados pela infecção. As descobertas – entre elas a constatação de que a covid-19 tem como caráter central a formação de trombos na microcirculação pulmonar – contribuem para o entendimento da fisiopatologia da enfermidade e o desenvolvimento de novas estratégias terapêuticas.

“Esse estudo foi a prova final do que vínhamos alertando desde o comecinho da pandemia: a covid-19 grave é uma doença trombótica. O vírus sars-cov-2 tem um tropismo pelo endotélio [é atraído para esse tecido], a camada de células que reveste os vasos sanguíneos. Portanto, ao invadir as células endoteliais, ele afeta primeiro a microcirculação. O problema começa nos capilares do pulmão, para depois ir coagulando os vasos maiores, podendo atingir qualquer outro órgão”, explica a pneumologista Elnara Negri, professora da Faculdade de Medicina da USP (FMUSP), coautora do artigo e uma das primeiras pesquisadoras do mundo a trabalhar com essa hipótese (leia mais em: agencia.fapesp.br/33175).

Elnara Negri - Foto: Reprodução/FMUSP

Elnara Negri – Foto: Reprodução/FMUSP

No estudo, apoiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), os autores observaram por microscopia eletrônica o efeito do vírus nas células endoteliais do pulmão de pacientes que morreram com covid-19 grave no Hospital das Clínicas (HC) da FMUSP.

A partir de autópsia minimamente invasiva, foi possível observar em todas as amostras a alta prevalência de microangiopatia trombótica – oclusão generalizada na microcirculação por trombose. As amostras analisadas são oriundas de pacientes que foram hospitalizados entre março e maio de 2020. Todos os pacientes foram intubados, necessitaram de terapia intensiva e morreram de hipóxia refratária (insuficiência respiratória). Vale destacar que nenhum paciente incluído no estudo foi tratado com anticoagulantes, pois essa não era a diretriz para o tratamento de covid-19 naquele momento. Também não existiam vacinas disponíveis na época.

Endotélio descamado

Negri explica que, revestindo o endotélio, existe uma camada glicoproteica denominada glicocálix, que faz com que o sangue passe naturalmente pelas artérias, veias e capilares sem coagular.

“Alguns estudos anteriores realizados por Helena Nader na Unifesp [Universidade Federal de São Paulo] mostraram que, para invadir a célula, o vírus se liga principalmente ao receptor ACE-2 [proteína encontrada na superfície de diversas células do corpo, inclusive nas do epitélio e endotélio do sistema respiratório]. No entanto, antes disso, ele se liga ao heparan sulfato [um polissacarídeo] associado à membrana das células endoteliais, que forma justamente o glicocálix. Portanto, quando o sars-cov-2 invade o endotélio, ele o descama e destrói o glicocálix. Isso resulta em exposição tecidual e na coagulação intravascular, começando na microcirculação”, detalha Negri.

Como a ação inicial do vírus é na microcirculação pulmonar, os exames contrastados para investigação de presença de trombos em vasos maiores, realizados em pacientes com covid-19 grave na época, nunca detectaram o problema precocemente.

No entanto, explica Negri, a disfunção endotelial é um fenômeno-chave na covid-19, pois está diretamente associada à ativação da resposta inflamatória característica da doença. “A invasão massiva do vírus e a destruição do endotélio promovem a ruptura da barreira endotelial e o recrutamento de células imunes circulantes, ativando vias relacionadas à trombogênese e à inflamação”, diz.

No trabalho, os pesquisadores observaram que o dano causado no endotélio tende a preceder duas características comuns a casos de desconforto respiratório: o vazamento significativo da membrana alvéolo-capilar dos pulmões e o acúmulo de polímeros de fibrina (proteína associada à coagulação e ao processo de cicatrização) nos alvéolos pulmonares.

Um trabalho do mesmo grupo da FMUSP, liderado por Thais Mauad, incluindo análise do transcriptoma (conjunto de moléculas de RNA expressas em um tecido), demonstrou que diversas vias associadas à coagulação, à ativação de plaquetas e à formação de trombos já estavam ativadas precocemente nos pulmões de pacientes com dano alveolar, precedendo a inflamação.

Thais Mauad - Foto: Cecília Bastos/USP Imagens

Thais Mauad - Foto: Cecília Bastos/USP Imagens

A análise confirmou ainda que não se trata de uma coagulação comum, desencadeada pela ativação dos fatores de coagulação. “Na covid-19, a coagulação se dá por lesão endotelial e é potencializada por netose [mecanismo imune que consiste na saída do material genético contido no núcleo dos neutrófilos em forma de redes – as NETs – na tentativa de prender e matar o patógeno] e pela lesão das hemácias com dimorfismo [uma alteração morfológica das células vermelhas do sangue] e ativação plaquetária. Portanto, existe toda uma estrutura para que o sangue fique mais denso e provoque tantas complicações”, afirma.

A pesquisadora ressalta ainda que, nesse cenário, onde o sangue se torna muito viscoso e altamente trombogênico, o paciente precisa ser mantido hidratado, diferentemente do que é preconizado para o tratamento do dano alveolar difuso. “Além disso, o timing e o controle rigoroso da anticoagulação são fundamentais”, alerta.

Não por acaso, outro estudo do mesmo grupo, com a participação das pesquisadoras Marisa Dolhnikoff e Elia Caldini, demonstrou que o dano pulmonar em casos graves de covid-19 está associado ao nível de netose. Ao analisar amostras de tecido de autópsia pulmonar, os cientistas observaram que, quanto mais elevado era o nível de NETs, maior era o dano pulmonar dos pacientes.

Negri conta que começou a desconfiar da relação entre covid-19 e trombose no começo da pandemia, quando identificou um quadro muito parecido com o de pacientes cardíacos que havia tratado há mais de 30 anos. Após a cirurgia cardíaca, esses pacientes, na época, também apresentavam microcoagulação vascular, no entanto, isso ocorria por eles serem submetidos a um tratamento denominado circulação extracorpórea com oxigenadores de bolha – equipamento que não é mais utilizado na medicina justamente por causar dano endotelial.

“Era uma técnica muito utilizada há 30 anos, mas que provoca uma lesão pulmonar muito parecida com a da covid-19. Então, eu já tinha visto isso. Além da lesão pulmonar, outra semelhança entre os dois casos é a ocorrência de fenômenos trombóticos periféricos, como o dedo do pé roxo, por exemplo”, conta.

“Como na covid-19 grave a queda inicial da oxigenação no sangue é secundária à trombose dos capilares pulmonares e não há inicialmente acúmulo de líquido no pulmão, o órgão não fica ‘encharcado’ nem perde sua complacência. Isso quer dizer que o pulmão do paciente com covid-19 grave inicial não se parece com uma esponja cheia de líquido, como é o caso de pacientes com síndrome de desconforto respiratório. Pelo contrário, na instalação da insuficiência respiratória associada à covid-19 grave, o pulmão está desidratado e, apesar de o ar chegar até o alvéolo pulmonar, ele não consegue passar para a circulação por causa da formação de coágulos”, explica.

Negri conta que, nesses casos, o paciente consegue facilmente encher o pulmão de ar, mas o oxigênio não consegue passar para o sangue, pois os capilares estão obstruídos. “Isso explica a chamada happy hipoxia [hipóxia feliz], ou seja, o paciente não sente que sua oxigenação está baixa e não tem falta de ar”, diz.

Ao presenciar a intubação de uma paciente com covid-19 grave, a pesquisadora constatou que era necessária uma proposta de tratamento diametralmente diferente do que se fazia no começo da pandemia.

“O segredo para tratar o paciente com covid-19 grave é mantê-lo hidratado e usar anticoagulante na dose certa, checando o nível adequado de anticoagulação em ambiente hospitalar assim que ele começa a dessaturar, ou seja, ter baixa de oxigênio no sangue. Depois disso, é preciso manter controle diário dos níveis terapêuticos de anticoagulação por meio de exames de sangue, sempre em ambiente hospitalar para não haver risco de sangramento, e a profilaxia de quatro a seis semanas em média após a alta, que é o tempo de o endotélio se refazer”, comenta.

A pesquisadora explica que esse protocolo com hidratação e o uso de anticoagulantes se dá porque, diferentemente das outras síndromes agudas respiratórias (SARS), nas quais o problema da falta de passagem de oxigênio dos pulmões para o sangue está principalmente relacionado com a inflamação nos alvéolos pulmonares, na covid-19 grave inicial o dano endotelial dos capilares pulmonares é predominante.

Pulmão de paciente com covid-19 - Foto: Mstyslav Chernov/Wikimedia Commons/CC BY-SA 4.0

“Era justamente essa diferença entre a covid-19 e as outras síndromes respiratórias agudas graves que não se sabia lá no comecinho da pandemia. Por isso, inclusive, que tantos pacientes morreram nas UTIs [unidades de terapia intensiva] da Itália, por exemplo. O protocolo de tratamento usado naquele momento era outro”, lembra.

Antes do trabalho publicado no Journal of Applied Physiology, o grupo de Negri já havia observado, ainda em 2020, que o uso de heparina (um anticoagulante) melhorou a oxigenação de pacientes críticos. No ano seguinte, em colaboração com colegas de vários países, eles realizaram um ensaio clínico randomizado em que puderam demonstrar que o tratamento com heparina diminuiu a mortalidade em casos graves de covid-19. Os resultados foram divulgados no British Medical Journal (leia mais em: agencia.fapesp.br/37076).

“O estudo contribuiu para mudar as diretrizes de tratamento da covid-19 no mundo, pois pudemos demonstrar uma redução de 78% no risco de mortalidade quando a anticoagulação foi iniciada em pacientes que necessitavam receber oxigenação, mas ainda não estavam na UTI”, conta a pesquisadora.

Negri destaca que existe uma pressa em reverter a disfunção endotelial nos casos de covid-19 grave com o uso de anticoagulantes. “É preciso tratar a coagulação o quanto antes, pois isso é crucial para evitar o desenvolvimento de síndrome respiratória aguda e outras decorrências da doença, como é o caso da chamada covid longa”, diz.

Outro estudo recém-publicado na Nature Medicine por cientistas britânicos reforça o caráter de formação de trombos do sars-cov-2. No trabalho, os únicos marcadores de prognóstico para covid longa identificados foram fibrinogênio e dímero D – duas proteínas associadas à coagulação.

“O estudo mostra que a covid longa resulta de trombose que não foi tratada adequadamente. O problema na microcirculação pode persistir em diversos órgãos, inclusive no cérebro, coração e músculos, como se o paciente sofresse pequenos infartos”, explica Negri.

O artigo Ultrastructural characterization of alveolar microvascular damage in severe covid-19 respiratory failure pode ser lido em: https://journals.physiology.org/doi/abs/10.1152/japplphysiol.00424.2023.

Este texto foi originalmente publicado por Agência Fapesp de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original aqui

* Da Agência Fapesp, com edição de Fabiana Mariz

** Estagiária sob supervisão de Moisés Dorado


Política de uso 
A reprodução de matérias e fotografias é livre mediante a citação do Jornal da USP e do autor. No caso dos arquivos de áudio, deverão constar dos créditos a Rádio USP e, em sendo explicitados, os autores. Para uso de arquivos de vídeo, esses créditos deverão mencionar a TV USP e, caso estejam explicitados, os autores. Fotos devem ser creditadas como USP Imagens e o nome do fotógrafo.