Livro faz imersão no mundo indígena do Alto Xingu

A obra da antropóloga da USP retrata o universo cultural dos povos Aweti, constituído por uma cosmologia própria, mitos de origem, rituais e outros elementos

 27/09/2016 - Publicado há 8 anos
Livro identifica a prática da feitiçaria como um contraponto das relações de parentesco e um fator de fragmentação da sociedade - Foto: Marcello Casal Jr/Agência Brasil
Livro identifica a prática da feitiçaria como um contraponto das relações de parentesco e um fator de fragmentação da sociedade – Foto: Marcello Casal Jr/Agência Brasil

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Revisão de uma pesquisa de doutorado desenvolvida no Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), sob a orientação de Eduardo Viveiros de Castro, A flecha do ciúme: o parentesco e seu avesso segundo os Aweti do Alto Xingu , de Marina Vanzolini, é uma imersão no mundo indígena alto-xinguano. Marina Vanzolini, que é professora de Antropologia Social da USP, contou com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) para a publicação do livro.

“Eu já tinha, desde o mestrado, um contato com os Aweti. Mas o doutorado, que se prolongou de 2006 a 2010, me deu a oportunidade de morar com eles na aldeia por períodos longos, que somaram mais de um ano, e aprender razoavelmente bem a língua, do tronco tupi. Para mim, essa imersão foi fundamental. Meu livro é uma tentativa de descrição do mundo Aweti”, disse a pesquisadora à Agência Fapesp.

Marina faz questão de falar em “mundo” e não em “visão de mundo”. “Penso o trabalho do antropólogo como uma descrição de mundos, e não de visões de mundo. Quando falamos em ‘visões de mundo’, temos, por pressuposto, que o mundo está dado: existe um mundo, cada qual tem sua visão a respeito, mas a visão do antropólogo é a que realmente corresponde ao mundo real. Está implícita a ideia de que ‘eu sei o que é o mundo’, ao passo que o outro possui apenas ‘uma visão desse mundo’. Aqui entra em jogo uma opção ética que, para mim, é fundamental. Quando vou a campo, não vou para ensinar nada. Estou ali para aprender. Então, minha atitude tem que ser completamente aberta, sem pressupostos, sem prejulgamentos. Sou radical em relação a isso. Não dá para ser antropóloga sem levar isso inteiramente a sério. As pessoas me recebem em seus lares, me acolhem, abrem seu mundo inteiramente para mim. O mínimo que eu posso fazer é levá-las a sério, traduzir seu mundo, sem julgá-lo”, afirmou.

E que mundo é esse, de que fala a pesquisadora? “Os Aweti compartilham com outros povos, cujas línguas pertencem a troncos linguísticos diferentes, o mundo que, em antropologia, chamamos de ‘Alto Xingu’. Esses povos compartilham não apenas um espaço geográfico, constituído pela região dos tributários do rio Xingu, mas também um espaço cultural, constituído por uma cosmologia, mitos de origem, rituais e outros elementos. Seu ritual comum mais conhecido e significativo é o Quarup. Os povos xinguanos se veem como uma unidade. Na língua aweti, a mesma palavra usada para designar ‘humano’ é empregada para nomear ‘xinguano’. É como se, para eles, os povos que compõem o complexo do Alto Xingu constituíssem o epítome da humanidade”, respondeu.

Xamãs e feiticeiros

Nesse mundo, existe a figura do xamã, que é basicamente um curador, portanto, valorizado positivamente. Mas existe também uma outra figura, cuja designação a antropóloga traduziu pela palavra “feiticeiro”. O feiticeiro pode ser um xamã. Mas ser xamã não implica ser feiticeiro. É uma outra especialidade, que envolve outros conhecimentos. E a figura do feiticeiro possui sempre uma conotação negativa. “No mundo alto-xinguano, chamar alguém de ‘feiticeiro’ é quase uma sentença de morte. Hoje em dia, isso já não acontece, mas, antigamente, as pessoas executavam os feiticeiros. Por isso, devido a essa conotação fortemente negativa, e por respeito aos Aweti, escolhi não utilizar a palavra no subtítulo do meu livro, não associar o nome dos Aweti a ela. Então, eu me refiro a ela de forma eufemística, como o ‘avesso do parentesco’”, explicou.

Uma das questões que se colocaram para a pesquisadora ao escrever sua etnografia foi exatamente a de como falar da feitiçaria sem ofender. Segundo ela, no contexto alto-xinguano, a feitiçaria é um assunto do qual ninguém diz que sabe. Por outro lado, é um assunto onipresente em todas as conversas, e determinante no modo de vida. Para referir-se a ele, Marina valeu-se de um recurso retórico do qual os próprios Aweti se valem, que é um certo “ouvi dizer”.

“No mundo alto-xinguano, a feitiçaria é um limiar do humano. Tudo o que é humano pode, em certa medida, ser englobado pelo termo ‘parentesco’. E tudo o que passa pela feitiçaria é, em certa medida, excluído do campo do humano. Por isso, a feitiçaria se apresenta como um vetor de fragmentação, uma potência que impede a unificação da sociedade. Esta é uma ideia central da minha etnografia, cujo eixo estruturante é a oposição entre feitiçaria e parentesco”, resumiu.

O trabalho de Marina contrapõe-se, em certa medida, à tese defendida por Michael Heckenberger, da University of Florida. Baseado em pesquisa arqueológica, Heckenberger afirmou a existência, no passado, de sociedades de muito maior escala no mundo xinguano. E atribuiu a fragmentação atual ao impacto da colonização, das epidemias, enfim, da desorganização social dos povos locais em função do contato com a sociedade envolvente. “Não questiono, obviamente, os efeitos nefastos do contato. Ao contrário. Mas penso que a fragmentação e a escala na qual os povos xinguanos vivem hoje têm a ver com algo que é constitutivo de seu próprio modo de vida. Heckenberger realizou um trabalho muito sério e aportou conhecimentos que não se tinha sobre a região. Seus achados arqueológicos realmente demonstraram a existência na região de sociedade de maior escala. Porém, a partir dessa evidência, ele sugeriu que, se não fosse a colonização, talvez os povos xinguanos compusessem hoje um pré-estado. É com isso que eu não concordo”, destacou.

“O problema enfrentado pela pesquisa arqueológica é que, muitas vezes, o pesquisador se vê impelido a tirar grandes conclusões a partir de uma base de dados muito exígua, porque o vestígio arqueológico não fala. O que percebi, em meu trabalho de campo, na interação com as pessoas, foi que todo movimento de unificação gerava também um movimento de sentido contrário, um movimento de fragmentação. E que isso passava muito fortemente pela feitiçaria. Do meu ponto de vista, a feitiçaria não é um dado acidental. A força de desintegração é a antítese necessária da força de integração. E a feitiçaria cumpre exatamente esse papel. Ela é gerada nesse mesmo processo”, enfatizou.

O “dono do feitiço”

Conforme relatou a pesquisadora, o feitiço é sempre um objeto material. E a palavra que os Aweti utilizam para nomear o feiticeiro pode ser traduzida como “o dono do feitiço”. Quer dizer, aquele que produz o artefato destinado a fazer o mal. No mundo do Alto Xingu, a pessoa adoece por três motivos: devido a um “fator natural” (por exemplo, um peixe que a mãe comeu e que fez mal ao filho), pela “influência de um espírito não humano” ou pela “ação de um feitiço”. Dos três motivos, o mais perigoso é sempre o terceiro.

“A palavra que traduzi por ‘feitiço’, e que os próprios Aweti chamam de ‘feitiço’ quando falam em português, designa umas flechas minúsculas e invisíveis. Essas flechas podem ser lançadas contra a pessoa. E, neste caso, seu efeito é letal. A pessoa morre em um ou dois dias e não há o que fazer. Ou podem ser enroladas em bolinhas de cera, amarradas com fios de algodão e escondidas no mato. Neste caso, cabe ao xamã descobrir onde foram escondidas; ir até o local, geralmente próximo, e resgatar o artefato; desmanchá-lo e colocar o material na água, anulando, assim, seu efeito. Há substâncias que são agregadas às flechas para intensificar a força do feitiço e lhe conferir qualidades específicas. Por exemplo, um espinho, um pedaço de fio elétrico, um fragmento de pele de cobra, um palito de fósforo (destinado a fazer com que a pessoa tenha febre)”, relatou Marina.

O trabalho de cura xamânica é sempre feito diante de um público, geralmente constituído pela família do doente. Para realizá-lo, o xamã Aweti não ingere substâncias alucinógenas, como fazem outros povos indígenas, mas fuma quantidades maciças de tabaco. Tendo fumado, entra em um transe, e em contato com seus “espíritos auxiliares”, que o guiam no processo de conhecimento. Guiado por esses “espíritos”, ele “vê” a alma do doente, “vê” se existe algum feitiço relacionado com a doença e “vê” onde o feitiço está escondido. Como fica tonto, trôpego e balbuciante, o xamã sempre precisa ter pessoas que o ajudem. Esses ajudantes são, muitas vezes, familiares seus, que o amparam, escutam seus balbucios e os transmitem às outras pessoas presentes. “Eu pude assistir a vários desses rituais de cura. E entendo que, como antropóloga, não cabe a mim julgar o que vi e opinar sobre a veracidade dos fenômenos ou não”, comentou a pesquisadora.

“O termo que os Aweti utilizam para nomear os ‘espíritos auxiliares’ é o mesmo que usam para ‘xamã’. Esses espíritos são, por assim dizer, os ‘xamãs do xamã”. E, para virar xamã, a pessoa precisa ter acesso a pelo menos um deles. A iniciação xamânica é uma espécie de mistura entre o xamã e o ‘espírito’. Por meio de certos procedimentos, o xamã passa a ser um pouco ‘espírito’ também”, prosseguiu.

“Quando digo ‘espírito’, estou traduzindo, por meio de uma palavra da língua portuguesa, um termo aweti. Porém essa tradução nunca é exata. Este é um dos grandes desafios e também uma das grandes belezas da atividade antropológica. Quando dizemos ‘espírito’, supomos uma imaterialidade, uma transcendência, que não correspondem à noção aweti de ‘espírito’. No entanto, eu preciso usar alguma palavra da minha própria língua. Então, devo atribuir a essa palavra a devida complexidade, devo carregá-la de conotações. Para isso, tento sempre apresentar um conceito evocando os contextos em que ele é acionado. Não que isso lhe confira objetividade, mas nos ajuda a perceber a polivalência, a polifonia, a complexidade do termo. A etnografia é sempre produto de um encontro. E a tradução é a essência da atividade antropológica. A teoria nos dá instrumentos para desenvolver esse diálogo de maneira interessante. Mas a escrita envolve tanto ciência quanto arte para dar conta dessa sutileza”, ponderou Marina.

Almas capturadas

20160927_livro_xinguNa cosmologia aweti, os entes aqui chamados de “espíritos” se aproximam dos humanos pelo desejo de conviver conosco. Existem aqueles que ajudam, como os “espíritos auxiliares” do xamã. E existem também aqueles que, no afã da proximidade, capturam o humano e o afastam de seus parentes, de seus congêneres. Eles não são intrinsecamente malignos. No entanto, fazem o mal. A reversão de suas ações é sempre uma negociação, na qual os xamãs lhes dão algo em troca da “alma capturada” do doente. De alguma maneira, os “espíritos” são integrados ao mundo social, para que não o desintegrem.

“Existe um panteão. Mas existe também a possibilidade de que coisas inusitadas se revelem ‘espíritos’: um jacaré, uma canoa, uma panela. De repente, descobre-se que determinada panela não era apenas uma panela, mas uma ‘panela-espírito’, e que essa ‘panela-espírito’ fez alguém adoecer. Quer dizer, as coisas visíveis podem se revelar ‘espíritos’. E existem também os ‘espíritos’ que não são vistos. ‘Espíritos’ que estão na mata, nos fundos de rios. Porém as doenças causadas por ‘espíritos’ são sempre reversíveis. Ao passo que a feitiçaria pode ser fatal. É paradoxal, porque aquele que mata nunca é o diferente, mas o semelhante. No mundo aweti, não existe morte que não seja por feitiço. Isso não é dito de forma categórica, porque seria afirmar a possibilidade da imortalidade, o que não acontece. Mas, na prática, cada vez que uma morte acontece, ela é interpretada como resultado de um feitiço, uma ação maligna praticada pelo próprio homem”, pontuou a pesquisadora.

Vanzolini contou um pouco de sua vida junto aos Aweti. “Fui morar com uma família, que me hospedou. Então, eu acordava de manhã e fazia o que tinha para fazer. Ia para a roça com as mulheres para colher mandioca. Ou ficava em casa com as mulheres, fiando algodão, tecendo esteiras de palha. Cada dia era um dia. E nunca se sabia ao certo se haveria o que comer, porque podia acontecer de os homens saírem para pescar e não conseguirem pegar nada. Passei muita fome e emagreci, antes de aprender que, quando tem comida, é preciso comer bastante e acumular gordura para a época de escassez. Também não existem obrigações em relação ao trabalho. As pessoas trabalham quando há algo para fazer. Quando não há, ficam sem fazer nada. Eu fluía no ritmo deles”, relatou.

“Não gosto de trabalhar com gravador. E os Aweti também não ficavam à vontade com isso. Mas, logo que cheguei, negociei com dois velhos contadores de mitos algumas gravações. E tive que pagar por isso. Eles narravam, eu gravava, e depois traduzia com a ajuda de um professor indígena. Aprendi muito com isso. Depois, foi tudo na base da conversa, das anotações no caderno de campo. Eles entenderam que eu estava interessada nas curas xamânicas. Então, quando aconteciam os rituais, eles me convidavam para participar. Na casa em que eu morava, havia um xamã importante. Quando ele ia fazer alguma coisa, sempre me chamava para acompanhar. Mas, apesar de tanta proximidade, persiste uma diferença. Existem pouquíssimas pessoas que realmente conseguem estar no mundo indígena como iguais. Existe uma barreira. Não no mau sentido. Acho que os Aweti se abriram para mim, assim como eu me abri a eles. Mas a diferença é um dado. É diferente, por exemplo, de fazer pesquisa no candomblé, onde você pode se iniciar. No mundo indígena você pode criar uma relação pessoal, de afeto e gratidão, mas isso não faz de você um igual”, finalizou.

A flecha do ciúme – o parentesco e seu avesso segundo os Aweti do Alto Xingu
Autora: Marina Vanzolini
Editora: Terceiro Nome
Ano: 2015
Páginas: 373
Preço: R$ 46

José Tadeu Arantes/Agência Fapesp

Mais informações: site da editora Terceiro Nome


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