Falta de um centro de referência prejudica divulgação de acervo sobre o Movimento Negro

Estado democrático foi vital para preservar a documentação, mas arquivos estão fragmentados e são pouco divulgados

 21/11/2019 - Publicado há 5 anos
A falta de um centro de referência prejudica a divulgação de arquivos sobre o Movimento Negro e a valorização da memória da luta negra – Foto: Arquivo Público do Estado de São Paulo

O Dia da Consciência Negra, comemorado em 20 de novembro, marca a data da morte de um dos principais ícones do Movimento Negro brasileiro: o líder quilombola Zumbi dos Palmares. Sua trajetória de resistência é estudada nos livros de história, sendo ele um dos personagens brasileiros mais conhecidos do século 17. Desde então, muitos outros líderes, intelectuais e militantes marcaram a história da luta do Movimento Negro. No entanto, apesar de o Estado democrático ter sido fundamental para garantir a preservação dos documentos sobre essa luta, esse material está fragmentado e espalhado em diversos acervos. A falta de um centro de referência prejudica a divulgação desses arquivos e a valorização da memória da luta negra.

Essa foi a conclusão da dissertação de mestrado realizada na Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP pela pesquisadora Fernanda dos Anjos Casagrande, sob orientação do professor Ivan Claudio Pereira Siqueira. A pesquisa, intitulada Acervos do Movimento Negro na cidade de São Paulo: um olhar para os registros da luta negra, teve enfoque no século 20, período turbulento, o que ressaltou ainda mais a importância de um Estado democrático para a preservação da memória dos movimentos sociais.

A pesquisadora buscou entender, primeiramente, quais eram os documentos existentes sobre o Movimento Negro e onde estavam localizados. Dada a dispersão desses acervos em diferentes instituições, definir esse corpus documental foi um desafio.

O primeiro passo foi, então, definir quais seriam os lugares pesquisados. Três instituições públicas, mantidas pelo Estado, foram escolhidas: o Arquivo Público do Estado de São Paulo, órgão da administração direta do Estado; o Centro de Documentação e História da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e o Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP, ambos centros de pesquisa ligados a universidades públicas.

Depois, a ideia foi entender como os documentos tinham sido alocados nessas instituições e qual era a política delas para preservação, acesso e, principalmente, divulgação.

“Reconhecer que esses documentos existem dentro dessas instituições e promover a divulgação é uma das ferramentas para a disputa pela memória. É disputar com uma memória que foi construída baseada em estereótipos, que serviam para fortalecer um regime de diferenciação”, explica Fernanda. Divulgar a existência desses acervos para a população em geral, não apenas para os pesquisadores, é uma forma de reconstruir a memória, que hoje é recheada de ideias pré-concebidas e narrativas equivocadas, que levam à invisibilização da luta, da resistência e da cultura da população afro-brasileira.

Nesse sentido, é importante também que a divulgação se dê quanto à localização dos documentos. A ausência de um grande centro de referência brasileiro sobre o Movimento Negro obriga os pesquisadores a fazerem verdadeiras peregrinações em busca de seus materiais de estudo. O Museu Afro Brasil é uma exceção, mas dedica-se à reunião de obras de arte. No caso da documentação de interesse histórico, social e político, as fontes de informação ainda estão muito difusas. Para Fernanda, é necessário pensar em um banco de dados virtual que disponibilize os catálogos dos acervos existentes.

Jornal O Clarim D’Alvorada, importante para o Movimento Negro na cidade de São Paulo no início do século 20 – Foto: Reprodução /ECA

Estado democrático, guardião da memória

Um ponto ressaltado pela pesquisadora foi a importância do Estado democrático para garantir a preservação dos documentos. Sua pesquisa fez um recorte do século 20, no qual o Brasil vivenciou as ditaduras varguista e militar.

Durante esses períodos, as associações negras, principais produtoras de conteúdo sobre a luta da população afro-brasileira, sofreram retaliações e impactos negativos em atividades como a publicação de jornais.

“O que eu ressalto é o papel do Estado na preservação, que é uma coisa que veio a posteriori”, diz Fernanda. Ou seja, foi só a partir do enfraquecimento da ditadura militar, no período de abertura, que passou a existir um maior cuidado com os documentos históricos. Não à toa, esse momento coincide com o fortalecimento de diferentes movimentos sociais que começa na virada da década de 1970 para a de 1980.

“É perceptível o papel do Estado democrático nisso, porque se estivéssemos naquele período de um Estado totalmente autoritário, censor, controlador, não seria possível resguardar a memória de um movimento de luta.”

Inclusão informacional da população negra

A ideia de que estamos inseridos em um regime de informação que segue padrões de seu tempo e atende a interesses hegemônicos foi utilizada por Fernanda em sua pesquisa para discutir a inclusão de outras perspectivas dentro desse contexto.

A perspectiva da população negra, por exemplo, foi historicamente segregada e desvalorizada. O objetivo é a inclusão de um “regime de informação que contemple a história de toda a população, a exemplo desses acervos que contam uma parte da história mas que não estão incluídos em um ‘regime predominante’”.

Para a pesquisadora, a existência de acervos como o do Arquivo Público do Estado de São Paulo, do Centro de Documentação e História da Unesp e do Instituto de Estudos Brasileiros da USP já mostra um avanço, muito devido ao Estado democrático e ao esforço de pesquisadores e intelectuais preocupados em preservar a memória. É preciso, agora, divulgar que a história do Brasil – ou de um dos Brasis, por assim dizer – é, quase que literalmente, um livro de páginas abertas.

Maria Eduarda Nogueira/Laboratório Agência de Comunicação da ECA


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