Arqueólogos identificam caso mais antigo de sífilis congênita na América do Sul

Descoberta de evidências que apontam para primeiro caso registrado foi feita em um esqueleto enterrado há 9.400 anos em Minas Gerais

Foto da arcada dentária junto com os dentes cariados e com alterações morfológicas - Foto: artigo científico publicado

 22/11/2022 - Publicado há 2 anos     Atualizado: 23/11/2022 as 20:53

Texto: Ana Fukui*

Arte: Adrielly Kilryann

Cinco pesquisadores de diferentes áreas da USP descobriram uma série de evidências que apontam para o registro do caso mais antigo de sífilis congênita, que se manifesta em crianças quando são infectadas pela doença ainda na barriga da mãe. Trata-se de um esqueleto de uma criança de aproximadamente quatro anos de idade sepultada há 9.400 anos atrás.

O esqueleto foi descoberto em 2008 na região da Lapa do Santo, um sítio arqueológico em Minas Gerais. O sepultamento, identificado como B20, guardava os restos mortais preservados de um indivíduo que viveu em um agrupamento de humanos. Foram avaliados os ossos e dentes em várias metodologias distintas e comparadas com os resultados de outras pesquisas sobre paleopatologia, um ramo da arqueologia voltado para compreender as doenças de outras épocas. Os dados foram publicados no artigo An Early Holocene case of congenital syphilis in South America.

Rodrigo Elias de Oliveira, pesquisador colaborador do grupo e um dos principais autores do trabalho, descreveu a descoberta. “Junto com outras pessoas que trabalham no grupo, estudamos os dentes de diversas ossadas escavadas em Lapa do Santo de maneira sistemática. Durante essa busca, o B20 chamou a atenção pelo excesso de cáries e outros detalhes. Anotei essa informação e voltei a estudá-lo posteriormente.”

O passo seguinte foi mostrar que as evidências observadas poderiam ser causadas pela doença. Para isso, foi necessário observar os sinais deixados no organismo pela sífilis congênita registrados em documentos médicos atuais e comparar com os dados obtidos no esqueleto B20. “Havia lesões características nos ossos do crânio, da ulna e do fêmur”, explica Rodrigo, “e os dentes tinham falta de esmalte, além de estarem quase todos em péssimo estado, com alterações na estrutura. O conjunto dos dados apontava para sífilis congênita como a causa provável das lesões.”

Rodrigo Elias de Oliveira - Foto: Arquivo pessoal

Rodrigo Elias de Oliveira - Foto: Arquivo pessoal

A descoberta é ainda mais relevante por sua raridade. Há poucos casos similares descritos na literatura científica por conta da singularidade deles, que dependem de circunstâncias específicas. Por exemplo, os esqueletos infantis são mais frágeis que o esqueleto dos adultos, o que significa que estão menos preservados em sítios arqueológicos. A contaminação pela sífilis de mãe para filho acontece em 33% das gestações e a maior parte destas crianças pode ser assintomática durante a infância.

Sífilis

A sífilis é causada por uma bactéria e foi uma das primeiras doenças a serem tratadas com a descoberta da penicilina em 1943. Uma das questões desafiadoras no diagnóstico da sífilis são suas diferentes manifestações. Após a contaminação por contato sexual, a bactéria pode fazer com que surjam os sintomas imediatamente, tais como feridas pequenas no órgãos genitais, gânglios aumentados e íngua. Depois de um tempo, estes sintomas podem desaparecer e a doença se torna latente, ressurgindo após meses – ou mesmo anos – de maneira mais intensa, com manchas vermelhas, febre e dores de cabeça.

O surgimento da sífilis e sua dispersão tem sido um tema discutido pelos historiadores, dado que houve surtos na Europa em diferentes épocas e que foram motivo de mudanças de comportamento e mesmo de julgamento social, já que a sua transmissão acontece por meio de relações sexuais com pessoas contaminadas.

Lapa do Santo

A região da Lapa do Santo possui uma série de sítios arqueológicos escavados de 2001 a 2008, quando foram descobertas ossadas e outros indícios da ocupação humana na região. De acordo com o antropólogo André Strauss, um dos curadores da coleção armazenada no Laboratório de Arqueologia e Antropologia Ambiental e Evolutiva (LAAAE), na época a qual pertence o esqueleto B20 havia ocupação humana por todo o território brasileiro. Uma das discussões da arqueologia é sobre o tamanho desses grupos. Pela quantidade de vestígios deixados, imagina-se que eram da ordem de centenas de pessoas vivendo na mesma região durante milhares de anos. Além disso, “esse tipo de aglomeração favorece o surgimento e a propagação de doenças bacterianas, como é o caso da sífilis. Esta enfermidade existe na América antes da chegada dos europeus. E as pandemias são mais antigas do que imaginávamos.”

André Strauss - Foto: Canal USP/Youtube

André Strauss - Foto: Reprodução

André Strauss também aponta que vários pesquisadores já tinham estudado o esqueleto em suas pesquisas acadêmicas. “Ainda assim, o B20 guardava informações inéditas. Em quantas coleções pode acontecer o mesmo, isto é, serem analisadas por outro ângulo e levar a novas descobertas?”, pondera ele.

*Ana Fukui, bolsista Mídia Ciência Fapesp/FMUSP

Mais informações: e-mail rodrigo.oliveira@ib.usp.br, com Rodrigo Oliveira; e-mail strauss@usp.br, com André Strauss

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