O excesso de normas propostas por diferentes instâncias do Estado visando ao enfrentamento da pandemia tem gerado um processo descrito como inflação normativa: em 29 de junho, o painel de ações relacionadas à covid-19, que tramita no Supremo Tribunal Federal, contava com mais de 3400 processos, e estima-se que, se somadas outras jurisdições, o número alcance as dezenas de milhares. Isso dificulta o entendimento da população quanto às políticas ligadas à saúde, de acordo com a professora Deisy Ventura, do Departamento de Saúde Ambiental e coordenadora do doutorado em Saúde Global da Faculdade de Saúde Pública (FSP) da USP, que concedeu entrevista ao Jornal da USP no Ar.
Os dados que apontam para esse resultado estão compilados no primeiro boletim de Mapeamento e Análise das Normas Jurídicas de Resposta à Covid-19, desenvolvido pelo Centro de Estudos e Pesquisas de Direito Sanitário da Faculdade de Saúde Pública (Cepedisa) da FSP em parceria com a Conectas Direitos Humanos. O documento indica que o excesso de normas e sentenças não é sinônimo de mais direitos e está relacionado aos conflitos entre as entidades federativas do Brasil:
“Um exemplo bem atual é a legislação sobre o uso de máscaras. Ela implica que o cidadão terá no município uma regra que diz que ele não precisa usar máscara, no estado uma que diz que precisa e a União diz que precisa. O mosaico é infinito”, explica Deisy, editora do boletim.
As regras quarentenarias são um demonstrativo do processo que vem gerando, ainda de acordo com a primeira edição do boletim, a judicialização da saúde; ou seja, há diversas decisões levadas para o Judiciário que, na verdade, fazem parte do escopo dos governos. Se analisada a situação da Argentina, onde exclusivamente o ente federal toma ações de combate à pandemia, o impasse fica exposto: em nosso vizinho, há uma única lei, os municípios se alinham a ela e a população absorve com facilidade as medidas. Enquanto no Brasil, a fragmentação das decisões gera confusão, explica Deisy.
“A quantidade de normas dificulta para a cidadania a compreensão de quais são as regras e porque elas são assim — seu embasamento científico”, pontua a especialista.
Ainda são constatadas outras incoerências na evolução da legislação brasileiras nesse período. Há uma grande quantidade de normas infralegais (que estão hierarquicamente abaixo da lei), como decretos, portarias e instruções normativas. Basicamente, é o Poder Executivo legislando, sendo muitas das vezes contra a lei. Quando essa dimensão infralegal é muito volumosa — conclui Deisy — “é dificultado o controle pelo Poder Legislativo e, mais uma vez, para a cidadania é muito complexo”.
O primeiro boletim apresenta uma análise da legislação migratória brasileira. Para os pesquisadores, a pandemia da covid-19 tem sido um pretexto para retrocessos nessa área.
Ouça a matéria na íntegra no player acima.
Jornal da USP no Ar
Jornal da USP no Ar no ar veiculado pela Rede USP de Rádio, de segunda a sexta-feira: 1ª edição das 7h30 às 9h, com apresentação de Roxane Ré, e demais edições às 14h, 15h, 16h40 e às 18h. Em Ribeirão Preto, a edição regional vai ao ar das 12 às 12h30, com apresentação de Mel Vieira e Ferraz Junior. Você pode sintonizar a Rádio USP em São Paulo FM 93.7, em Ribeirão Preto FM 107.9, pela internet em www.jornal.usp.br ou pelo aplicativo do Jornal da USP no celular.