Diferenças étnico-raciais na mortalidade da pandemia foram subestimadas

Carta publicada no “Journal of Clinical Epidemiology” guiou pesquisa britânica que demonstrou que a diferença de mortalidade foi 47% maior entre negros em relação a brancos

 20/03/2024 - Publicado há 3 meses
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Nas favelas e comunidades periféricas, as medidas de distanciamento social não puderam ser cumpridas – Foto: Fernandes Dias/USP Imagens
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Uma carta do Journal of Clinical Epidemiology, escrita por investigadores do Laboratório de Interferência Causal em Epidemiologia da USP (Lince-USP), aponta que muitas análises dos desfechos da covid-19, ou seja, da conclusão dos casos, subestimam o papel das diferenças étnico-raciais na evolução da doença. Mais especificamente, os autores perceberam que, embora algumas variáveis ​​devam ser ajustadas ou controladas para obter medidas de efeito válidas, o ajuste para comorbidades pode apagar o efeito das disparidades étnicas em desfechos clinicamente relevantes como a mortalidade.

Para ilustrar a relevância das disparidades étnico-raciais na análise de causa e efeito nos resultados da covid-19, a equipe de pesquisadores elaborou um Diagrama Acíclico Direcionado (DAG): 

Diagrama Acíclico Direcionado proposto (imagem: Journal of Clinical Epidemiology)

 

Uma nova análise

Com base no diagrama acíclico publicado, uma equipe de epidemiologistas liderados pela especialista Annastazia Learoyd, da Universidade de Nottingham, Reino Unido, fez uma nova análise dos desfechos dos casos de covid-19 com base nos dados de hospitais do sul de Londres e chegou à conclusão que o coronavírus foi realmente mais letal entre pessoas de minorias étnico-sociais. 

Fredi Alexander Díaz-Quijano – Foto: Divulgação/FSP

O pesquisador Fredi Alexander Díaz Quijano, doutor em Saúde Pública pela USP e coautor da carta, explica melhor os resultados obtidos com base no novo modelo de análise:

“Quando a gente colocou o diagrama e explicou, justificou esse modelo conceitual, os pesquisadores concordaram com a gente e refizeram essa análise. Eles, numa análise anterior, não tinham nem encontrado a diferença entre a população negra e os desfechos, comparado com os brancos”.

“Quando eles refizeram essas análises, identificaram que as pessoas negras tinham mortalidade 47% maior do que as pessoas brancas. Além disso, também perceberam que uma associação com o grupo étnico asiático, que já tinha sido identificada, aumentou mais de 10%,” conclui o pesquisador.

Explicação da diferença

Para Gislene Aparecida dos Santos, doutora em Psicologia do Desenvolvimento Humano pela USP, essa disparidade gritante entre a mortalidade de negros e brancos se explica por combinações de fatores sociais e ambientais: 

Gislene Aparecida dos Santos – Foto: IEA/USP

“Eu não acredito que um único fator possa explicar esse índice”, desenvolve Gislene. “São aspectos socioambientais que determinam o adoecimento dos grupos específicos de pessoas ou populações, e também as próprias questões referentes à exclusão social e as desigualdades sociais. São aspectos que são sobrepostos”.

Ela explica que vários aspectos de risco para a covid-19 estão relacionados à discriminação sofrida por pessoas negras em sociedades racializadas.

“Sabe-se que há uma relação entre a vivência de discriminação racial e a incidência de hipertensão, falência renal, depressão e processos inflamatórios que resultam em doenças crônicas que muitas vezes agravam outras doenças, como se mostrou no caso da covid-19”, explica Gislene.

A realidade das favelas

Gislene dos Santos documentou os impactos da pandemia na favela da São Remo, localizada ao lado da Cidade Universitária, e percebeu que, no Brasil, outro fator também contribuiu para a maior mortalidade entre pessoas negras: as medidas de contenção, lockdown e auxílio propostas pelos governos não foram pensadas para a realidade das periferias brasileiras. 

“Eles [moradores da São Remo] enfatizavam algo que hoje é bastante nítido para muitas pessoas: as medidas pensadas para proteger a população contra o contágio não se aplicavam às periferias da cidade”, explica a médica. “É uma população que reside em aglomerados populacionais nos quais as moradias são quase que 100% precárias. As condições de saneamento básico e de acesso à água já eram bastante precárias antes da pandemia e uma das coisas que se observaram durante esse período é que o acesso a saneamento faz toda a diferença.”

Nas favelas e comunidades periféricas, as medidas de distanciamento social não puderam ser cumpridas até porque os moradores tiveram que estar sempre em contato, montando uma rede de apoio para acolher e fazer frente à fome, que assolou as comunidades em consequência do desemprego que a crise sanitária trouxe.

Segundo Gislene, a tese de imunidade de rebanho, em parte adotada como política sanitária do governo federal, também desprezou as realidades periféricas e, por consequência, as vidas das pessoas que residem em periferias como um todo. A pesquisadora explica que a covid-19 apenas ressaltou de maneira muito evidente os marcadores sociais que já eram presentes na sociedade brasileira: 

“Enquanto as pessoas de classe média, alta e altíssima puderam se isolar e trabalhar de suas casas, as pessoas que vivem nas periferias não tiveram essas opções. Elas perderam suas fontes de renda, de sobrevivência e foram consideradas ameaças para as pessoas de classe média e alta quando trabalhavam nas suas casas,” conclui a especialista.

*Sob supervisão de Paulo Capuzzo e Cinderela Caldeira


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