Cinema pode ajudar na reformulação de estereótipos atribuídos a mulheres

Stella Maris Scatena Franco e Lívia Perez explicam como a participação das mulheres na indústria cinematográfica se alterou ao longo dos anos

 10/01/2024 - Publicado há 4 meses     Atualizado: 17/01/2024 as 6:51
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Dykes to Watch Out For (DTWOF ) era uma história em quadrinhos semanal de Alison Bechdel – Reprodução/Center Stage

 

Em 1985, a cartunista norte-americana Alison Bechdel publicou em sua série de tirinhas Dykes to Watch Out For, um cartoon que ironizava a forma como as mulheres eram representadas em produções cinematográficas de Hollywood. Na tirinha, a personagem de cabelos curtos explica a outra mulher que só assiste a filmes que atendem a três características: se existem duas personagens mulheres, que conversem entre si e que falem sobre coisas que não sejam apenas homens. 

A partir desse quadrinho, em 2013, a ativista sueca Ellen Tejle desenvolveu o Teste Bechdel, que analisa, a partir dos três critérios apresentados pela personagem de Alison, como as mulheres são retratadas nos filmes. Ellen ainda criou um selo que pode ser anexado ao poster de produções que passem no teste. 

História do cinema

Filme A Chegada de um Trem na Estação, dos irmãos Auguste Lumière e Louis Lumière

 

A primeira exibição cinematográfica do mundo aconteceu em 1895, em Paris. Os irmãos Auguste Marie Louis Nicholas Lumière e Louis Jean Lumière criaram um curta de dois segundos, intitulado L’Arrivée d’un train à La Ciotat (A Chegada de um Trem na Estação), que deu início à indústria do cinema. Um ano depois, em 1896, Alice Guy-Blaché, primeira cineasta mulher do mundo, produziu a película Fada do Repolho, um dos primeiros filmes ficcionais da história – e pouco lembrado quando se estuda a história do cinema. 

Lívia Perez – Foto: EBC

As mulheres participam do cinema desde sua criação; entretanto, de acordo com Lívia Perez de Paula, pesquisadora da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP, com a expansão da indústria cinematográfica, houve uma marginalização feminina e um maior domínio masculino desse mercado. Depois das primeiras décadas do cinema, além da menor participação nas etapas da produção audiovisual, as mulheres começaram a ser retratadas nos filmes de maneira estereotipada. “São representações pouco complexas, que ficam focadas em estereótipos: a figura da mãe, da irmã, a figura amorosa, e quase sempre essa figura da mulher é representada de maneira anexa ao homem”, exemplifica Lívia. 

É a partir dos anos 1960 – período conhecido como segunda onda feminista dos países do norte global – que esse cenário começa a mudar. De acordo com Lívia, com o ingresso de mulheres com uma maior consciência feminista no cinema, houve um desejo de ampliar o tipo de representação realizado até então, complexificar as personagens e aumentar sua participação também na parte criativa. 

Críticas profundas?  

A partir da década de 1990, o cinema hollywoodiano passou a destacar frequentemente as mulheres como heroínas, o que permitiu que elas ganhassem um papel de destaque e deixassem de ser representadas apenas como personagens passivas. Stella Maris Scatena Franco, professora da  Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, destaca que esse novo cenário corrobora para uma leitura não tão tradicional como a que existia anteriormente – mulheres representadas de forma pouco complexa e anexa aos homens. 

Stella Maris Scatena Franco – Foto: FFLCH/USP

Entretanto, Stella explica que as críticas apresentadas pelas produções cinematográficas precisam ser profundas para apresentar algum grau de validação. “Se o cinema reproduzir – esse cinema tradicional, inserido em uma lógica de mercado pura e simplesmente, cheio de mensagens fáceis, que é um cinema puro entretenimento – uma lógica capitalista de mercado, não fizer uma crítica social mais ampla, eu fico um pouco duvidosa em relação ao alcance de uma projeção sobre a mulher que seja realmente diferente daquilo que convencionalmente foi disseminado”, exemplifica. 

Além disso, a professora questiona, do ponto de vista da análise histórica, o próprio processo de heroicização de personagens e pessoas. “Quando nós elegemos um herói ou uma heroína, vários outros personagens da sociedade ficam de fora. Então, um acaba assumindo o papel de protagonista, enquanto vários outros anônimos cairão no esquecimento”, aponta.

Diversidade no cinema

Em 1974, a crítica de cinema britânica Laura Mulvey publicou um artigo em que defendia que o cinema surgiu para satisfazer o prazer visual, principalmente masculino, através da sexualização dos personagens femininos – conceito conhecido como male gaze. Atualmente, é possível pensar em mais de uma classificação para “cinema” e como suas diferentes formas de produção e estruturação contribuem para a manutenção, ou quebra, dos estereótipos criados sobre as mulheres nos filmes. 

Se o cinema em questão diz respeito a uma produção tradicional, comercial e voltada para o entretenimento, ele possui mensagens classificadas por Stella como “fáceis”, que servem muito mais como reprodução do mundo do que como provocação para mudanças de comportamento mais profundas. Entretanto, há uma produção cinematográfica realizada por mulheres que critica profundamente a sociedade e a posição de passividade feminina.  

Camila: O Símbolo de uma Mulher – Cartaz/Divulgação

Em Camila: O Símbolo de uma Mulher (1984), produzido pela diretora e roteirista argentina María Luisa Bemberg, a protagonista é fuzilada grávida por se envolver em um caso amoroso com um padre no século 19. Esse filme apresenta não só críticas feministas, que questionam a posição da mulher na sociedade, como críticas políticas, já que essa é uma produção que retrata as ditaduras que a Argentina enfrentava – tanto na época em que a obra é retratada como na época em que o filme é lançado. 

Essa película demonstra, segundo Stella, como os aspectos da obra não estão desconectados. “A crítica feminista não está desligada de uma crítica política, ela não é uma crítica vazia, sem conexão com uma crítica mais ampla sobre a vida social e política”, exemplifica. Além disso, esse filme auxilia na desconstrução de estereótipos,  já que a personagem Camila não se conforma com as normas sociais da época, que impunham inúmeras restrições para as mulheres, para além de apenas retirar o protagonismo masculino. 

Além disso, o cinema contemporâneo também discute constantemente questões de gênero e seus desdobramentos, como as produções relacionadas ao movimento LGBTQIA+. A professora acredita que, diferentemente do que propôs a crítica britânica, essas produções cinematográficas não funcionam para corroborar com a satisfação masculina e a sexualização de mulheres. “Os movimentos sociais felizmente estão aí para não aceitarem passivamente essas imagens que são produzidas e para disseminarem bens culturais que vão na contramão dessa visão tradicional”, exemplifica. 

Lívia também acredita que o cinema pode ser um dispositivo para a discussão sobre gênero, identidade e sexualidade. As produções LGBTQIA+, cada vez mais presentes na atualidade, auxiliam na inclusão de novos personagens às telas do cinema e incluem essa temática de maneira mais natural às narrativas, como acontece na vida real. “Hoje a gente já tem filmes que discutem outras questões e filmes também que têm personagens homossexuais, que têm personagens transexuais e isso não é a questão principal do filme”, aponta a pesquisadora.

Rádio USP

Ouça a entrevista sobre o tema na primeira edição do Jornal da USP no Ar desta quarta-feira (17):

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(Post atualizado em 17/01, às 6h51)

*Sob supervisão de Paulo Capuzzo e Cinderela Caldeira

O Jornal da USP no Ar, Edição Regional vai ao ar de segunda a sexta-feira, a partir das 12h, pela Rádio USP em Ribeirão Preto, com produção e reportagens da Equipe de jornalismo da Rádio USP Ribeirão. Apresentação: Mel Vieira e Ferraz Junior.  Técnica: Luiz Fontana, Mario Brother e Gabriel Soares. Supervisão: Ferraz Junior. Coordenação: Rosemeire Talamone. Você pode sintonizar a Rádio USP  em Ribeirão Preto FM 107.9, pela internet em ribeirao.usp.br  ou pelo aplicativo do Jornal da USP no celular. 


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