Uma história sobre Tarsila, Oswald e a Saúde Pública

Por Mariana de Carvalho Dolci, pesquisadora da Faculdade de Saúde Pública (FSP) da USP

 07/04/2022 - Publicado há 2 anos
Mariana de Carvalho Dolci – Foto: Arquivo pessoal

 

Quem passa pela Avenida Dr. Arnaldo, na zona oeste de São Paulo, não imagina a quantidade de boas histórias que existem ali. Em 1880, quando ainda se chamava Avenida Municipal, já abrigava o antigo Lazareto de Variolosos, atual Instituto de Infectologia Emílio Ribas. Em 1887, foi fundado o Cemitério do Araçá, um dos mais antigos da capital paulista. Tempos depois, em 1892, foi criado o Instituto Bacteriológico, hoje Instituto Adolfo Lutz. Passados dois anos, o Lazareto passou a funcionar como Hospital de Isolamento. O fato de estarem em um ponto alto da cidade favorecia a circulação do ar e, a partir de estudos feitos na época, sabia-se que os ventos que sopravam sobre aquela colina dificilmente iam em direção ao perímetro urbano de São Paulo.

O fim do século 19 e o começo do 20 foram de intenso debate no campo da saúde pública, que ora usava o conceito da teoria miasmática, ora da teoria bacteriológica, possibilitando a coexistência das duas. Os miasmas seriam gerados pela sujeira encontrada nas cidades insalubres e por gazes formados pela putrefação de cadáveres humanos e de animais. A bacteriologia viria a estudar a etiologia das epidemias, endemias e epizootias mais frequentes em São Paulo – seria uma revolução para a saúde pública brasileira.

Se continuássemos seguindo pela antiga Avenida Municipal nos primeiros anos daquele novo século, chegaríamos a um amplo terreno e a uma bela casa que pertencia à família do poeta modernista, romancista e dramaturgo José Oswald de Souza Andrade (1890-1954). Aliás, aqui vai uma curiosidade trazida por Paulo Werneck em um artigo na Folha de S. Paulo em 2011: Oswald, explicou Antonio Candido em 1990, na Flip, é uma herança do nome do pai do escritor, que por sua vez deve seu nome a um personagem de um romance da escritora francesa Madame de Staël. Candido admitiu que, pelas raízes escocesas do nome, até poderíamos dizer “Ôswald”. Mas o costume familiar acabou abrasileirando o nome estrangeiro: Oswáld, portanto, tornou-se a pronúncia correta. Era assim que o poeta preferia ser chamado pelos amigos.

A pintora e desenhista Tarsila de Aguiar do Amaral (1886-1973) nasceu em Capivari, interior de São Paulo, e passou a infância na fazenda de seus pais. Estudou fora do País e, quando retornou, casou-se com o primo de sua mãe, o médico André Teixeira Pinto. O marido incomodava-se com seu ofício artístico e, depois do nascimento da única filha do casal, Dulce, Tarsila decidiu pela separação.

Em 1918, ela conheceu a pintora Anita Malfatti. Foi a partir das cartas enviadas pela amiga que Tarsila tomou conhecimento da Semana de Arte Moderna, ocorrida em fevereiro de 1922. De volta a São Paulo, Malfatti a apresentou aos artistas modernistas, formando assim o “Grupo dos Cinco”: Oswald de Andrade, Mário de Andrade, Menotti del Picchia, a própria Tarsila e sua amiga Anita.

Tarsila e Oswald começaram a namorar, mas mantinham discrição sobre o relacionamento. Nas cartas que trocavam quando ela estava em Paris, usavam pseudônimos. Foi só em 1925 que saiu a anulação de seu primeiro casamento, já que o divórcio não era então permitido por lei no Brasil. Casaram-se em 1926 e receberam convidados famosos como os políticos Washington Luís e Júlio Prestes.

Tarsila pintou sua obra mais famosa em 1928, o Abaporu, um presente de aniversário para o marido e, mais tarde, símbolo do Manifesto Antropófago. Sua sobrinha neta, de mesmo nome da tia, acredita que a inspiração para fazer essa obra foi um autorretrato. É o quadro mais valioso da história da arte brasileira.

O ano de 1929 foi bastante difícil para o casal. Além da grave crise econômica causada pela quebra da Bolsa de Nova York que afetou a produção de café da família de Tarsila e os obrigou a vender as propriedades, eles tiveram também que se desfazer da casa e do terreno (Chácara Água Branca dos Pinheiros) na Avenida Municipal. O conjunto foi passado para a Fazenda do Estado de São Paulo por conta das dívidas do poeta. Oswald se apaixonou pela estudante Patrícia Galvão, a Pagu, e Tarsila pediu a separação. No ano seguinte, a pintora passou a trabalhar na Pinacoteca do Estado, mas foi demitida após o golpe de Getúlio Vargas em Júlio Prestes.

Parte do terreno que eles perderam para o governo do Estado sedia, desde 1931, todo o complexo da Faculdade de Saúde Pública da USP. A casa foi a primeira instalação do Departamento de Profilaxia da Lepra. Em 1970, passou a ser a Policlínica da Capital, ligada ao Departamento de Hospitais de Dermatologia Sanitária – era o ambulatório de tratamento de pacientes com hanseníase.

Geraldo de Paula Souza, médico sanitarista paulista, trouxe dos Estados Unidos a ideia de um posto de saúde experimental. Implantado como um modelo em 1922, foi oficializado em 1925 após a reorganização do Serviço Sanitário, dirigido por ele. Desde então presta serviços de saúde pública. Na década de 1930, instalou-se no subsolo do Instituto de Higiene, hoje o prédio da Faculdade de Saúde Pública na Avenida Dr. Arnaldo. Em 1984, o centro foi rebatizado de “Centro de Saúde Escola Geraldo de Paula Souza”, que passou a funcionar na casa histórica em 1987.

Em 2005, nos estudos de tombamento da área feitos pelo Condephaat, já se exaltava a importância da construção: a pequena escala da casa chegava a ser surpreendente se comparada às construções monumentais da avenida. Além da preservação de uma arquitetura característica do início do século passado. Por ocasião da comemoração dos 90 anos do Centro de Saúde, em 2015, localizamos as escrituras originais referentes à doação da casa e do terreno que pertenceram ao casal de modernistas.

Histórias como a de Oswald e Tarsila nos fazem refletir. A comemoração do Centenário da Semana de Arte Moderna nos traz uma certeza ainda maior de que a preservação e identificação do patrimônio histórico e artístico brasileiro precisam de apoio e atenção.


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