O assassinato de George Floyd não é um acidente de percurso de um policial americano em “desvio de função”, senão quase toda uma tragédia civilizacional para os países ocidentais, que fizeram dos direitos humanos e da democracia o core da ordem liberal política moderna.
Para a sociedade americana, e digo para a sociedade e não para seus governantes, que na atual conjuntura parecem tão afastados daquele core, é como acordar do sonho americano, não aquele do american way of life, mas aquele baseado no direito à vida, à proteção das liberdades civis, à dignidade das pessoas e à justiça. Olhando algumas redes de TV dos Estados Unidos nas últimas semanas centenas de pessoas da sociedade americana têm dado testemunhos em que as palavras que mais se escutam são essas, especialmente, a palavra “justiça”.
Talvez a maior perplexidade da sociedade americana, e até seu maior horror, seja o de perceber que as constatações que Tocqueville fazia na Democracia na América quase 150 anos atrás sobre as desigualdades dos negros americanos ainda se mantêm vigentes. “Nos Estados Unidos”, dizia Tocqueville, “o preconceito dos brancos contra os negros parece tomar-se mais forte à medida que se destrói a escravidão […] deram-se ao negro direitos eleitorais; mas se ele se apresenta para votar corre risco de vida. Oprimido, pode se queixar, mas só encontra brancos entre seus juízes. A lei, no entanto, abre-lhe o banco dos jurados, mas o preconceito afasta-o dele. Seu filho é excluído da escola em que vai se instruir o descendente dos europeus. […] Não lhe fecham as portas do céu, porém a desigualdade mal se detém à beira do outro mundo”[1].
Mas é claro que essas palavras de Tocqueville não cristalizaram no tempo. Mudanças nas práticas sociais de alteridade e nas mentalidades aconteceram na sociedade americana. Por isso, ante o assassinato de Floyd, a sociedade americana não é indiferente ao legado e conquistas de direitos humanos e da democracia. Se a morte de Floyd é social e culturalmente dolorosa porque desenterra velhas feridas raciais da sociedade americana, de outro lado, gera uma imensa revolta social em terras daquele país.
A sociedade entende bem que o assassinato de Floyd é uma tragédia civilizatória, que pode estar se repetindo com mais frequência do que se imagina, e que, de alguma maneira, a retorna aos tempos de desigualdade em que Tocqueville fez essas reflexões. O ódio e a injustiça racial que se creditava enterrados, convicção essa abalada pela morte trágica de Floyd, têm tido uma resposta social, seja no protesto pacífico ou no violento que se têm espalhado por quase todo o pais. Não é ainda suficiente para compensar a dor privada da família de Floyd nem a dor pública da comunidade à qual ele pertence, mas é suficiente e sintomática da mudança humanista operada na mentalidade da sociedade civil americana.
Mas esta crise civilizacional que irrompe em solo americano com a morte de Floyd revela o pior dos sintomas das relações entre Estado e o indivíduo americano. Como sabemos, Estado e indivíduo (no caso, americano) sofrem de mútua desconfiança histórica, mas o Estado dos tempos de Franklin D. Roosevelt e seu new deal mostrou-se solidário ao indivíduo com a extensão dos direitos sociais a trabalhadores, algo assim como a fundação de um contrato social entre Estado e sociedade; e os governos democratas da década de 60 consolidaram esse contrato com um pacto racial que fez dos negros americanos detentores de direitos civis, naturalmente após imensas lutas. Aqueles dois contratos pacificaram muito as desconfianças entre Estado e indivíduo.
No entanto, o que essa crise civilizatória revela é o retorno a um padrão, que também se creditava superado, da alienação e afastamento ético e político entre Estado e sociedade americana.
O principal representante do establishment político americano na atualidade, Donald Trump, não oferece como compensação votos de solidariedade ao povo negro americano nem um pedido de desculpas pela morte de Floyd nas mãos de um agente do Estado. Em vez de solidariedade, Trump oferece o trágico som das baionetas e dos tanques nas ruas tomadas por uma sociedade multirracial revoltada que clama por justiça para Floyd e sua comunidade de cor.
Quando ativistas e gente comum gritam, nas ruas de Los Angeles, Nova York, Filadélfia e outras cidades, as palavras “a breather for Floyd ” (“um respiro por Floyd”), tal grito encorpa a ruptura do contrato social e racial americano, afundando o fosso entre a elite estatal politicamente surda e eticamente insensível perante uma sociedade estridente nas suas demandas de justiça não atendidas.
[1] Alexis de Tocqueville, A democracia na América, São Paulo, Martins Fontes, 2005, pp. 394 e 398.