Como ataca claramente as desigualdades entre os cidadãos em relação ao que o Estado fornece, ponto central de toda e qualquer discussão política, é objeto de muita polêmica. Ela é racional, técnica, economicamente viável e deixa claro, em sua formulação, que todas as políticas públicas requerem decisões democráticas sobre, afinal, quem paga e quem se beneficia com elas.
E isto vale especialmente para aquelas que devem proporcionar o exercício pleno dos direitos constitucionais da cidadania. Um deles é o transporte público de qualidade para todos (“direito do cidadão, dever do Estado” é o que está inscrito em cada ônibus em São Paulo e na Constituição do Brasil, graças à emenda aprovada e proposta por Luiza Erundina).
A Tarifa Zero é absolutamente racional. A vida nas cidades (e mesmo nas regiões rurais) requer mobilidade, assim como requer educação, luz, saneamento, segurança pública, saúde e, logo mais, acesso à internet.
Há uma questão absolutamente pertinente: quem paga? Como obter fundos para o sistema contratado por custo, com níveis de serviços minimamente aceitáveis: tempo de trajeto, frequência de veículos, tempo de espera no ponto, lotação máxima aceitável, em horários de picos e vales, à noite, no domingo etc.?
Como toca no centro da convivência urbana e, ao mesmo tempo, da política da urbe e do Estado, desde 1990 a Tarifa Zero vem despertando paixões. Mas como ela faz sentido político e técnico, não é à toa que sua implantação cresce pelo Brasil afora e no mundo (como no recentíssimo caso de Montepellier, na França, por exemplo).
No transporte coletivo urbano, a tarifa, como medida de custo do serviço e, ao mesmo tempo, de preço cobrado ao usuário, é uma ficção que tem sérias consequências na qualidade do serviço, em sua acessibilidade e outras. Ela é, ao mesmo tempo, remuneração pelo serviço e reguladora da demanda.
Quanto maior a tarifa, maior a capacidade de custeio, de investimento e lucratividade da atividade, mas… menor a acessibilidade por boa parte da população, o que a torna um eficiente dispositivo de controle social. No senso comum, entretanto, a tarifa é compreendida como um “custo por passageiro”. Mas, assim tratada, ela é uma falácia, porque passageiro não provoca custo. O dimensionamento para obter indicadores de qualidade é que provoca custo. Essa “tarifa” afasta o passageiro e, a rigor, tende a infinito, porque o número de passageiros tende a zero quanto mais se aumentar a “tarifa”.
Primeiro problema básico do chamado “custo por passageiro”: um direito constitucional que requer pagamento para ser exercido não é de fato um direito. Segundo: os sistemas de transporte público de passageiros são viáveis apenas em algumas linhas, para algumas pessoas com renda para pagar esse custo. Suponhamos que uma tarifa de R$ 15 por passageiro pudesse sustentar um sistema de qualidade, limpo, com indicadores muito aceitáveis. Quantos passageiros poderiam pagar esse valor?
A tarifa sempre é arbitrária, definindo capacidade de investir e operar e, ao mesmo tempo, excluindo parte da demanda. No Brasil, a história do descasamento entre a tarifa “justa para custear o sistema” e a tarifa “justa para o passageiro” é a história da decadência dos serviços (veja que isso não se restringe ao transporte público).
Como se lidou com isso? Várias soluções para linhas rentáveis e não rentáveis, trajetos que servem não para transportar com qualidade, mas para “pescar” passageiros e lotar os ônibus (mais receita, com praticamente o mesmo custo), câmara de compensação, tarifa única, empresa estatal (CMTC) criada para absorver o prejuízo etc.
Não há tarifa que garanta qualidade, corredores, BRTs, ônibus com energia verde, e seja suportada unicamente pelos passageiros. E não é só no Brasil que a renda baixa e custo alto do investimento e da operação não se dão bem. Nem em São Paulo, nem… em Paris, onde, desde o fim da Segunda Guerra, o sistema público de transporte é financiado de três modos: um terço oriundo da tarifa paga, mas outros dois terços pelo tesouro francês e pela taxa paga pelo comércio e demais atividades econômicas de Paris. Reconhece-se que: (a) a tarifa é incapaz de cobrir os custos; (b) os benefícios dos sistemas vão muito além dos passageiros usuários.
No Brasil, a tarifa, por ser fictícia, arbitrária, inútil para financiar os serviço e impedidora do exercício de direito, pode e deve ser abolida. Mas, como se diz, “não há almoço grátis”. Nem almoço, nem vacinas, nem educação pública, nem USP. Tudo custa, alguém paga. Mas porque esses e outros serviços são essenciais para a sociedade, aquele que os consome não é o único responsável pelo seu pagamento. A sociedade, com desigualmente justa carga tributária, basicamente conforme renda e riqueza, “banca” estes serviços. A Tarifa Zero é a mesma coisa.
Políticas públicas evidentemente custam caro, sobretudo para prover serviços de excelência. E eventuais deficiências do SUS ou da educação pública devem-se não à gratuidade dos serviços, mas ao subdimensionamento dos investimentos e do custeio para operação em níveis de qualidade minimamente aceitáveis. A educação custa caro, o SUS custa caro, as vacinas custam caro. Tudo custa. O que é preciso é gerir para que o máximo benefício seja oferecido com o mínimo custo. Sim, isso vale para toda a atividade do Estado.
A vacina é um benefício para a sociedade, não apenas para o indivíduo que toma vacina. Por isso a vacina custa, mas toda a sociedade paga. Faz sentido para a saúde, para a educação pública, para a segurança pública. Por que não faria sentido para a mobilidade urbana? Ainda mais porque a Tarifa Zero promove distribuição da renda não gasta na mobilidade, que será poupada ou consumida como nunca, gerando… impostos e fluxo na economia.
Argumentos são vários contra a universalização do transporte e, portanto, da mobilidade urbana para todos, não apenas para quem tem renda para ter automóvel, que o usa como e quando quer, para onde quer, apenas pagando um imposto sobre a propriedade e, em algumas estradas, pedágios. Limite apenas da lei, o código de trânsito, muitas vezes desrespeitado, assim como a própria lei penal. Mata-se e morre-se livremente no trânsito, basicamente à Tarifa Zero.
Em 1990, fiz parte da equipe liderada pelo engenheiro Lucio Gregori, que propôs o projeto Tarifa Zero no governo Erundina. Desde então, discussões foram realizadas, mas críticas baseadas em argumentos disparatados foram, com o tempo, abandonadas. Não obstante, algumas persistem, porque se trata de uma discussão verdadeiramente política:
• Crianças vão viajar sem parar, marginais, velhos, aposentados, punks, verdadeira bagunça: a experiência no Brasil e no exterior mostra que isso não passa de preconceito. Com disciplina e urbanidade (como no metrô) não há aposentados passeando sem parar (e, se houvesse, seria ruim?).
• De graça é, por definição, ruim: a USP é ruim?
• Pessoas vão usar para viagens curtas que poderiam ser feitas a pé: e se alguém pode se deslocar por três ou cinco quadras na Avenida Paulista sem pagar, qual o problema? Lotação? E a lotação das vias por carros, por pessoas que se deslocam três ou cinco quadras para ir à padaria? Estes podem, mas ou outros não? Sim, é preciso dimensionar a frota, intervalos, lembrando, acima de tudo, que os ônibus que circulam com 20, 30 ou 40 pessoas provocam exatamente o mesmo custo (exceto por valores mínimos de combustível adicional para descolar massa maior).
• Haverá viagens “inúteis”: o que é viagem útil? Quem tem direito de classificar viagens pela utilidade? Ir ao parque, visitar família, é “inútil”?
• Todo mundo deveria ter renda para pagar tudo: isso é uma peculiar concepção de Estado e de serviço público, que no limite mercantiliza a saúde, a segurança, a educação. De fato, a sociedade deve escolher o que deve ser direito fundamental e o que é fornecimento mediante pagamento. Mas isso é o mesmo que definir o que é direito ou que é consumo. Alguém chegou a perguntar retoricamente “por que não pedem passagem grátis para a Disney?”
• Os prestadores de serviços não vão se preocupar em pegar passageiros: irão, sim, porque serão fiscalizados, por GPS, por bluetooth, por satélite. A estatística e a ciências dos dados permitem verificar o serviço, os fluxos, as lotações, as paradas nos pontos. Onde está a dificuldade?
• Quem não usa vai pagar: isso mesmo! Quem anda de carro paga, assim como eu, idoso, pago pelas vacinas e pela educação básica das crianças e adolescentes, ou não deveria ser assim?
• As pessoas vão usar mais só porque está disponível: talvez alguns, marginalmente. Mas ninguém respira mais porque o ar está disponível. As pessoas usam o transporte porque precisam, porque têm direito ao acesso ao lazer e ao prazer, além do trabalho. Elas vão em busca de algo, não pelo “raro prazer” de viajar de ônibus.
Tarifa Zero não é incentivo ao transporte púbico? Não, sozinha não faz essa proeza. Ao lado da Tarifa Zero, é preciso elevar muito outras “tarifas” ou custos, por exemplo o do uso do sistema viário (este, hoje, de graça, não confundir com IPVA) para despejar carbono na atmosfera. E sim, corredores bem operados, com semáforos inteligentes para dar preferência aos ônibus, podem competir com os automóveis. A Tarifa Zero, mais ainda. Corredores e linhas articulados com sistemas de bicicletas para a última ou primeira milha – de preferência, não exploradas por bancos.
A Tarifa Zero é uma política pública para os tempos de exclusão, de concentração de renda. É a primeira política de outras que certamente virão, para garantir mínimas condições de vida para uma sociedade em que o valor é cada vez mais concentrado e que, o que é fundamental reconhecer: não precisa de parte da força de trabalho disponível, seja de baixa, média ou altíssima qualificação. A ilusão de que todos ganhariam o suficiente para comprar o automóvel, a máxima fordista, ficou no século 20. Vêm aí outras formas de Tarifa Zero para permitir a vida – digna – em sociedade.
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