Sylvia Caiuby Novaes, 50 anos de USP

Por Francirosy Campos Barbosa, da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP) da USP, Júlio César Suzuki e Rose Satiko Gitirana Hikiji, professores da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP

 Publicado: 22/05/2024
Francirosy Campos Barbosa – Foto: Arquivo pessoal
Júlio César Suzuki – Foto: FFLCH-USP
Rose Satiko Gitirana Hikiji – Foto: Marcos Santos/USP Imagens
É desafiador condensar em alguns parágrafos uma vivência ativa na universidade durante 50 anos. Sylvia Caiuby Novaes completou em março deste ano cinco décadas de atuação como docente junto ao Departamento de Antropologia. As décadas iniciais de sua trajetória acadêmica marcam o período de transição da primeira para a segunda geração de professores brasileiros da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, em substituição aos professores estrangeiros, como Claude Lévi-Strauss e Roger Bastide, sementes originais do pensamento antropológico e sociológico da Universidade de São Paulo.

É a professora com a carreira mais longeva da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Contratada como auxiliar de ensino na área de Antropologia no curso de Ciências Sociais em março de 1974, Sylvia é a fundadora e coordenadora do Laboratório de Imagem e Som em Antropologia (Lisa) e uma das pioneiras da antropologia visual no Brasil.

Sylvia ingressou na USP em 1968, um dos anos mais efervescentes da história política nacional e internacional. Sua turma protagonizou a batalha da USP com o Mackenzie, na Maria Antônia. Foi em um curso optativo oferecido por Thekla Hartmann, em 1970, que Sylvia teve seu primeiro contato com os bororos de Mato Grosso, com os quais passou, na época, dois meses. Nesse contexto faz as primeiras fotografias que viriam a integrar um acervo de mais de 2.500 negativos com essa população indígena. Sylvia ingressa no mestrado, em 1972, e sua defesa se dá em 1980, com a dissertação intitulada Mulheres, homens e heróis: dinâmica e permanência através do cotidiano da vida Bororo. Um outro trabalho resultante deste período foi a publicação da coletânea Habitações indígenas (1983).

Em 1979, Sylvia colabora na fundação do Centro de Trabalho Indigenista (CTI), com uma importante atuação política em defesa dos direitos dos povos indígenas, pelo reconhecimento de seus territórios e pela preservação de sua cultura. Em 2017, o LISA recebeu do CTI um acervo fotográfico compreendendo 500 pastas, com mais de 12 mil imagens registradas de 1978 a 2005. Em 2024, outras fotografias, negativos, slides, gravações de áudio em fitas de rolo e DAT, e gravações de vídeo em fitas DAT, miniDV e VHS foram incorporadas a esse acervo. Os materiais são majoritariamente com os guaranis mbya, fotografados por Maria Inês Ladeira. Os frutos de uma relação de mais de quatro décadas continuam a ser colhidos.

Em 1990 defende o doutorado, com o título Jogo de espelhos – Imagens da representação de si através dos outros. A tese foi publicada no Brasil pela Edusp, em 1993; em inglês, pela University of Texas Press, em 1997, com o título The play of mirrors – The representation of self mirrored in the other, e em italiano, em 2018, pela Cooperativa Libraria Editrice Università di Padova, com o título Gioco di specchi. Jogo de espelhos torna-se um clássico não só para o campo dos estudos ameríndios, com sua análise do universo indígena Bororo, mas nos ajuda a refletir sobre a questão da identidade de forma mais ampla, uma vez que a construção das imagens de si está relacionada com a forma como somos vistos e refletidos por nossos outros.

A efetivação de Sylvia como professora doutora deu-se em 1990, junto ao Departamento de Antropologia. Mobilizada pelo seu interesse pelas artes, pela fotografia, pelo uso das imagens, Sylvia inaugurou o Laboratório de Imagem e Som em Antropologia (LISA) em 1991. Em 1993, realizou um pós-doutorado no Granada Centre for Visual Anthropology, na Universidade de Manchester, na Inglaterra. Durante o pós-doutorado produziu dois documentários: Al-Masoon, wonder women (1994) e Um casamento no Paquistão (1995). No primeiro filme, Sylvia acompanha as mulheres maravilhosas de Al Masoom, uma organização de muçulmanas paquistanesas em Manchester, Inglaterra, envolvidas com os problemas em campos de refugiados muçulmanos na Bósnia e na Kashemira. O segundo documentário, realizado em Rawalpindi, Paquistão, acompanha os vários ritos que compõem o casamento muçulmano, assim como as atividades em que se envolvem as famílias do noivo e da noiva. Uma curiosidade: as filhas de Sylvia, Laura, Isabel e Camila, então com 16, 14 e 4 anos, respectivamente, que muitas vezes a acompanham em suas pesquisas de campo, podem ser vistas no filme entre as jovens paquistanesas que se preparam para as festividades.

Ao retornar da Inglaterra, em 1995, Sylvia funda o Grupo de Antropologia Visual (Gravi-USP), na época formado por seus alunos e orientandos que iniciavam a pós-graduação, como as autoras deste artigo, em que, sob a liderança de Sylvia, se articulava o interesse pelo cinema, pela fotografia e pelas artes, associado à formação na antropologia.

Em 1998, com pesquisadores do Gravi, Sylvia realiza o primeiro de três projetos temáticos financiados pela Fapesp. Intitulado Imagem em foco nas ciências sociais, o projeto de quatro anos permite o início das atividades de produção audiovisual no Lisa-USP, com a aquisição de ilhas de edição em vídeo e equipamentos para a captação de imagens e sons. O projeto também resulta na publicação do livro Escrituras da imagem (Edusp, 2004).

Outros dois projetos temáticos são desenvolvidos junto ao Lisa com a coordenação de Sylvia: Alteridade, expressões culturais do mundo sensível e construções da realidade – Velhas questões, novas orientações (2003-2007) e A experiência do filme na antropologia (2010-2015). O livro A experiência da imagem na etnografia (Terceiro Nome, 2016) é um dos resultados deste último projeto.

Cada um desses projetos conta com dezenas de pesquisadores, desde a iniciação científica ao pós-doutorado, e resultam em produções como livros, artigos, filmes, ensaios fotográficos, teses, dissertações, exposições, seminários nacionais e internacionais, que consolidam a Universidade de São Paulo como um expoente da antropologia visual no cenário nacional e internacional. Muitos dos integrantes desses temáticos são hoje docentes da USP, Unifesp, Unesp, UFRGS, UFF etc.

Sylvia realiza seu concurso de livre-docência em 2006, com a tese Etnografia e imagem, que reúne artigos, ensaios fotográficos e vídeos. Em 2010, tornou-se professora titular no Departamento de Antropologia.

Sylvia transita entre áreas de pesquisa e campos etnográficos com desenvoltura. Sua iniciação na antropologia se dá com populações indígenas e hoje continua atuando junto ao Centro de Estudos Ameríndios da USP. Sua imersão na antropologia visual se dá no início dos anos 1990, e é consolidada na coordenação do Gravi-USP, do Lisa-USP e na área da antropologia das formas expressivas junto ao Departamento de Antropologia. Nesse campo, Sylvia chega a explorar a etnoficção, em uma incursão na periferia de São Paulo em um projeto colaborativo com a antropóloga canadense Alexandrine Boudreault-Fournier e com Rose Satiko Hikiji, uma das autoras deste texto. O projeto, financiado pela Fapesp e pela Universidade de Victoria, no Canadá, resulta no filme Fabrik funk (2015), um curta que conta a história de uma jovem que sonha em ser uma MC em Cidade Tiradentes, o maior conjunto habitacional popular da América Latina, que é conhecido como uma Fábrica de Funk.

Mais recentemente, Sylvia dedica-se à pesquisa do trabalho de três fotógrafas que desenvolvem seus trabalhos com populações indígenas. Por meio de um projeto de pesquisa financiado pela Fapesp, iniciou a investigação das obras de Claudia Andujar, Lux Vidal e Maureen Bisilliat. Contemplada em primeiro lugar com um prêmio Proac (Programa de Ação Cultural do Governo do Estado de São Paulo para artes visuais), Sylvia desenvolve neste momento uma exposição que busca evidenciar a pertinência do olhar fotográfico dessas mulheres em tempos atuais, em que os povos indígenas continuam vendo suas terras invadidas por garimpeiros e madeireiros, que degradam seus territórios e levam doenças de todos os tipos à população. A exposição acontecerá a partir de outubro deste ano no Centro Universitário MariAntonia (Ceuma) da USP e deve reunir imagens simultaneamente estéticas e políticas, que não se restrinjam ao domínio jornalístico, etnográfico ou institucional, revelando uma equivalência entre aquilo que essas mulheres fotógrafas percebem e o que imaginam em termos de presente e futuro desses povos indígenas.

Entre suas atividades de gestão na Universidade, destacamos a chefia do Departamento de Antropologia durante os anos 1999-2003 e 2007-2009, posteriormente foi diretora do Centro Universitário MariAntonia entre 2014 e 2016. Atualmente é a editora responsável pela revista de antropologia GIS – Gesto Imagem e Som, cujo corpo editorial conta com vários de seus ex-alunos, o que revela sempre o trabalho coletivo que a docente implementou em seus 50 anos de universidade.

É preciso celebrar cinco décadas de dedicação ao ensino, à pesquisa e à extensão universitária. Nós, Franci e Rose, que fomos orientandas de Sylvia, e eu, Júlio, ainda que não tenha sido seu aluno, temos o privilégio de acompanhar parte desta trajetória cujas buscas estão sempre acompanhadas da leitura da alteridade, das diferenças e dos outros que habitam o universo de possibilidades do que se define como humano.

Em nome de todos os pesquisadores que foram e ainda são orientados por ela, deixamos registradas nossa admiração e gratidão, o que é compartilhado por todos que se aproximam de uma trajetória ímpar de dedicação à compreensão do mundo, cujos caminhos ensinam sobre o trilhar que revela.

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