Em Porto Alegre (RS), a população vive uma histórica guerra toponímica com o Guaíba que a abastece: alguns querem sua classificação como rio, outros como lago – até como estuário já houve. Os argumentos variam entre científicos, defesa ambiental ou mesmo por puro conservadorismo e tradição. Neste caso, porém, a legislação ambiental e proteção de suas margens realmente poderia ser alterada – apesar de já consolidada.
A população se conecta com as águas superficiais, mesmo com os córregos canalizados e retificados que fluem de forma apertada e controlada pelas capitais. Seja o arroio Dilúvio em Porto Alegre, o ribeirão Arrudas em Belo Horizonte ou o rio Aricanduva em São Paulo: os rios urbanos são referências e desenvolvem diferentes serviços ecossistêmicos nas cidades.
Ao longo da história alguns rios acabam sendo desviados ou mesmo revestidos e cobertos por avenidas e ruas. Se tornam apenas memória nas cidades, se tornam invisíveis para a população – e por vezes lembrados apenas durante os alagamentos por sua importância de macrodrenagem. O caso do riacho Cheonggyecheon, em Seul (Coreia do Sul), é um exemplo que tenta ser seguido em diferentes capitais brasileiras. Modificações foram feitas e o rio foi “desenterrado” e despoluído para ser devolvido à sua população. O invisível se tornou um cartão postal.
Os “rios voadores” que fluem da Amazônia para o sul do Brasil também são invisíveis, apesar de sua importância nos ciclos hídricos que sustentam as cidades que enterram seus rios superficiais. Mas nenhuma água é tão invisível aos olhos de quem se beneficia quanto as águas subterrâneas.
“Fazer o invisível visível” é o tema da Unesco de 2022 para as águas subterrâneas. Mas as águas subterrâneas geralmente só se tornam visíveis ao escorrer pelas torneiras de quem as utiliza. É o caso de 52% das cidades brasileiras que são abastecidas total (36%) ou parcialmente (16%) com água subterrânea distribuídas pela rede pública, totalizando mais de 30 milhões de brasileiros (18% da população).
Mas é no abastecimento privado que as águas subterrâneas fazem a diferença no país. Os mais de 2,5 milhões de poços tubulares (vulgo artesianos) produzem água suficiente para abastecer toda a sua população e é usada no abastecimento complementar de casas, condomínios, nas prestadoras de serviços, indústrias e na agricultura. Se não fossem por essas águas, muitas cidades colapsariam em épocas de seca. A inviabilidade ocorre também porque 70% dos poços são clandestinos – o que torna a gestão desse recurso muito limitada.
Apesar de parecer uma fonte inesgotável e geralmente mais “limpa” que as superficiais, os lençóis freáticos e os aquíferos estão sob risco, assim como os rios urbanos. Para alguns, as águas subterrâneas seriam um recurso estratégico, para o futuro – como as “louças da vovó”, guardadas para situações especiais. Porém, as águas subterrâneas já fazem parte do abastecimento de muitas cidades e não as usar é uma perda de oportunidade. As águas subterrâneas são um recurso que poderá resolver os problemas de hoje e de amanhã. E para isso, deve haver planejamento.
Os aquíferos devem ser vistos como um banco de águas, uma “poupança” – que pode render se as extrações forem menores que as reposições a longo prazo. Mas a recarga de grandes aquíferos, como o caso do Guarani, é muito lenta. E assim, este banco está tendo prejuízos, caindo seus níveis ano a ano em algumas cidades paulistas. E caso não consigamos reduzir as saídas, precisaremos complementar as entradas, fazendo recargas artificiais.
Enquanto dezenas de rios, arroios, córregos e igarapés são facilmente lembrados pela população, a maior parte destas pessoas talvez sequer saibam nomear três aquíferos ou percebam que podem estar entrando em contato com estes ao beber uma água mineral. É preciso dar visibilidade às águas subterrâneas. É preciso pensar no futuro, olhando para o presente.