Repensando a inovação

Por Marcos Barbosa de Oliveira, professor da Faculdade de Educação (FE) e do Instituto de Estudos Avançados (IEA), ambos da USP

 08/08/2023 - Publicado há 12 meses
Marcos Barbosa de Oliveira – Foto: FFLCH
Agradeço ao professor Plonski a leitura e os comentários sobre meu texto referente a seu artigo Missão inovar: um ensaio sobre a inovação na construção do futuro da Universidade. A meu ver, nossas posições não diferem a ponto de inviabilizar o debate. Por outro lado, para avançarmos, parece-me necessário atentar para o sentido preciso da palavra-chave, “inovação”.

No presente contexto, a palavra tem dois sentidos relevantes. Um deles é o tradicional, mais genérico, definido no dicionário Houaiss, por exemplo, como “ação ou efeito de inovar” e, por extensão, “aquilo que é novo, coisa nova, novidade”. No outro sentido, usado em meu texto, uma inovação é uma invenção rentável, que pode ser implementada por uma empresa, contribuindo para a maximização de seu lucro seguramente, e a curto ou médio prazo. No campo das políticas científicas e tecnológicas, nas últimas décadas, esse tem sido o sentido dominante. Há muitas evidências que sustentam tal afirmação; vou me limitar a duas. A primeira, e mais importante, é a explicação de Freeman, no livro A economia da inovação industrial:

Devemos a Schumpeter a distinção de extrema importância entre invenções e inovações, que, a partir dele, foi amplamente aceita, e incorporada pela teoria econômica. Uma invenção é uma ideia, um esboço ou um modelo para um novo ou melhorado artefato, produto, processo ou sistema. As invenções podem ser com frequência (embora nem sempre) patenteadas, mas elas não levam necessariamente a inovações técnicas. Na verdade, a maioria delas não leva. Uma inovação no sentido econômico somente é completada quando há uma primeira transação comercial envolvendo o novo produto, sistema de processo, sistema ou artefato, apesar de a palavra ser também usada frequentemente para descrever todo o processo.

Num plano muito diverso, a outra evidência são os lemas adotados para as Olimpíadas USP de Inovação. O da primeira, realizada em 2008, foi “Da ideia ao produto, da academia para o mercado”; o da Olimpíada de 2011, “Faça acontecer: transforme a ciência em negócio”.

As observações do professor Plonski sobre a antiguidade da ideia de inovação são válidas apenas para a inovação no sentido tradicional. No sentido mercadológico, o uso da palavra foi ele próprio uma inovação (no sentido tradicional), que teve seus primórdios com Schumpeter, e generalizou-se na década de 1970, graças a Freeman.

Numa outra passagem de seu comentário, o professor Plonski atribui a V. Bush a adesão ao Modelo Linear de Inovação (MLI). Tratei dessa questão extensamente no artigo Technology and basic science: the linear model of innovation. A primeira tese do artigo é a de que, contrariamente a interpretações inovacionistas, Bush claramente não foi um adepto do MLI. Para reforçar minha argumentação, recorri a alguns especialistas na matéria, como D. Stokes, que afirma, na obra Pasteur’s quadrant: basic science and technological innovation:

Uma ironia do legado de Bush é que ele próprio nunca professou esta imagem gráfica unidimensional [o MLI]. Sendo um engenheiro com experiência sem paralelo com relação às aplicações da ciência, ele estava muito ciente dos complexos e múltiplos trajetos que levam das descobertas científicas aos avanços tecnológicos – e as variadas defasagens associadas a esses trajetos. Os grandes avanços tecnológicos que ele ajudou a fomentar durante a guerra dependiam tipicamente de conhecimento proveniente de numerosos e díspares ramos da ciência. Nada no relatório de Bush sugere que ele endossasse o modelo linear.

Radicalizando a tese, outro especialista, D. Edgerton, sustenta no artigo The linear model of innovation did not exist, não apenas que o MLI não figura em Science the endless frontier, mas que ninguém jamais o defendeu. Ou seja, o MLI não tem defensores, mas apenas críticos. É um espantalho (strawman), uma falsa questão levantada para desviar a atenção do que realmente importa.

Pelas razões que apontarei a seguir, a intenção dos que a levantaram foi a de solapar a valorização da ciência básica, preconizada por V. Bush em seu relatório.

Por outro lado, desafiando as evidências, os adeptos do movimento em prol da inovação adotaram em tal grau de unanimidade a crítica a Bush pela suposta defesa do MLI, que a transformaram num dogma. Já em 1991, Rosenberg, um dos pioneiros do movimento, considera a questão encerrada, num artigo em cujo primeiro parágrafo se lê:

Todo o mundo sabe que o MLI está morto. […] Já teve inúmeros sepultamentos honrosos, e não tenho a intenção de ressuscitá-lo apenas a fim de providenciar para que seja mais uma vez enterrado.

Em 1996, o próprio Christopher Freeman, questionando em certa medida tal unanimidade, escreveu:

Nenhum modelo do processo inovativo foi mais frequentemente atacado e demolido que o assim chamado “modelo linear de inovação”. […] Em certa época, era quase impossível ler um livro ou artigo sobre a política ou previsão tecnológica que não começasse ou terminasse com tal polêmica.

Na mesma linha, Mirowsky escreve, em Science mart: privatizing American science: “Tornou-se um lugar-comum começar a maioria dos cursos sobre política científica e economia da ciência com algo chamado ‘o modelo linear de inovação’, apenas para rapidamente rejeitá-lo e menosprezá-lo”.

Entretanto, admitindo, com Stokes e outros, que Bush não era adepto do MLI, como explicar essa falha gritante na argumentação inovacionista? A resposta a essa pergunta é de fundamental importância, por lançar luz sobre a relação entre a ciência básica e a aplicada (ou tecnologia), que constitui um dos principais focos no debate contemporâneo em torno das funções, financiamento e administração da Universidade, bem como em torno das políticas científicas e tecnológicas. Cabe neste ponto um esclarecimento terminológico. O qualificativo “básica” em “ciência básica” (basic science) e “pesquisa básica” (basic research) é um tanto ambíguo. No sentido essencial para os argumentos de Bush, pesquisa básica é a motivada pelo puro interesse intelectual. Nos termos do relatório:

O progresso científico num extenso campo resulta da livre atuação de intelectos livres, trabalhando em temas de sua própria escolha, ditados por sua curiosidade pela exploração do desconhecido. A liberdade de investigação precisa ser preservada em qualquer plano de apoio governamental à ciência”.

Por outro lado, “básica” pode ser entendida no sentido de “fundamental”, evocando as grandes teorias, como a da gravitação de Newton e a da evolução, de Darwin. Esse segundo sentido tem certo valor ideológico, por conotar uma valorização da pesquisa. Contudo, a grande maioria das pesquisas básicas, no primeiro sentido, nada têm de fundamental, muitas são ultra especializadas. Um nome mais adequado no contexto do relatório seria “pesquisa motivada pela curiosidade” (ou, simplificadamente “pesquisa curiosa”; em inglês, curiosity driven research). Para não destoar do uso dominante, no que se segue continuarei a usar o termo “básica”.

Na resposta que proponho para a pergunta lançada acima, a falha decorre do impulso de desvalorizar a ciência básica. Isso pode parecer estranho, uma vez que, ao longo de sua história, a ciência básica sabidamente tem dado origem a invenções, muitas delas rentáveis. Acontece porém ‒ e esse é o x da questão ‒ que o potencial de gerar inovações de cada projeto de pesquisa é incerto, e quando existe só se realiza a longo prazo. Essa é a justificação da cláusula “seguramente e a curto ou médio prazo” aplicada à maximização do lucro, na definição mercadológica da inovação. E tal impulso, por sua vez, decorre do “curtoprazismo” próprio dos valores neoliberais.

Em minha interpretação, a comunidade científica aderiu ao inovacionismo por considerar que o valor econômico das inovações (no sentido mercadológico) pode ser mobilizado para reforçar o argumento legitimador econômico de suas reivindicações de verbas públicas. O argumento, naturalmente, é o de que as inovações a que a ciência dá origem, na medida em que contribuem para o florescimento das empresas, contribuem ipso facto para o desenvolvimento do país.

Como procuro mostrar no artigo (História do inovacionismo no Brasil: últimos episódios), o fracasso da campanha pró-inovação solapa a validade do argumento econômico: se as inovações são o dispositivo por meio do qual a pesquisa contribui para o desenvolvimento do país, quanto menos inovações, menos desenvolvimento. Se não bastassem outras razões, esta já seria suficiente para justificar a proposta de que a comunidade científica se empenhe em investigar em profundidade as causas do fracasso.

Por outro lado ‒ tomando a liberdade de mencionar uma passagem desse artigo ‒ entre os argumentos legitimadores das reivindicações da comunidade científica mais presentes no debate público encontra-se, ao lado do econômico, o que se pode chamar argumento dos benefícios. Ele tem como alicerce não o impacto global das atividades científicas, como acontece no argumento econômico, porém, num nível mais concreto, contribuições específicas da ciência para o bem da humanidade. Os casos mais indiscutíveis situam-se no campo da medicina; por exemplo, as várias formas de anestesia, os antibióticos e – com grande destaque nos recentes tempos de pandemia – as vacinas. Abrir mão do argumento econômico, portanto, não deixa a comunidade científica desarmada em sua luta contra a onda anticientífica e obscurantista que vem se avolumando nos últimos tempos, levando não só ao corte de verbas, mas também à erosão da autoridade epistêmica da ciência.

Levando adiante a interpretação, o próximo passo consiste em reconhecer que apesar, de toda a vaga mercantilizadora do neoliberalismo, uma parcela significativa da comunidade continua a defender a curiosidade intelectual enquanto motivação para a pesquisa, ou seja, a ciência básica. Isso posto, a meu ver a comunidade científica, não só no Brasil, mas no mundo todo, demorou a perceber que, embarcando na canoa inovacionista, estava prejudicando a ciência básica. Só nos últimos anos a comunidade científica começou a reagir, procurando revalorizar a ciência básica por meio de iniciativas, das quais o Ano Internacional das Ciências Básicas para o Desenvolvimento Sustentável, estabelecido pela ONU, é um exemplo.

Na seção 3 do artigo mencionado, tratei da auditoria operacional realizada pelo TCU, entre junho e dezembro de 2018, referente à atuação dos órgãos federais responsáveis pelas políticas de fomento à inovação, especialmente o (na época) Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações, a Finep e o BNDES. Os resultados da auditoria foram dados a público na forma de um relatório. Seu objetivo declarado consistia em

[…] identificar atores, políticas, iniciativas e arranjos institucionais, bem como fatores que podem estar contribuindo para o presente baixo posicionamento do Brasil nos rankings de inovação, propondo ações mitigadoras.

Como se percebe, esse objetivo pressupõe o resultado negativo das campanhas inovacionistas, e, dessa maneira, envolve sérias críticas dirigidas aos órgãos relevantes mencionados, mas também, pelo menos indiretamente, à comunidade científica. Desta maneira, era de se esperar que ela reagisse, de alguma forma. Só que não: o relatório da auditoria foi recebido com um silêncio quase completo.

Por uma curiosa coincidência, em meio a esta troca de ideias com o professor Plonski, foi divulgada no dia 4 de julho a notícia sobre uma nova auditoria operacional do TCU, do mesmo tipo da anterior, desta vez com foco na Política Nacional de Inovação. De novo, o teor dos resultados da auditoria é decididamente crítico. Nos termos da notícia,

No trabalho atual, o Tribunal monitorou se as falhas anteriormente identificadas foram sanadas com a institucionalização da PNI e se essa política está alinhada com os demais normativos que tratam do tema.
O TCU constatou que os problemas detectados nas fiscalizações anteriores não foram totalmente sanados, nem mesmo com a implementação da PNI. Há fragilidades no sistema de atuação governamental de fomento à inovação, que ainda não está articulado com outras políticas governamentais.

Quanto às recomendações,

Também deverá haver uma revisão da Política Nacional de Inovação ou a formulação de uma nova política nacional de ciência, tecnologia e inovação.

Embora as razões que a motivam sejam bem diferentes, creio ser razoável afirmar que essa recomendação do TCU corresponde, no essencial, à implícita no título deste artigo: “Repensar a inovação”.

Concluindo, gostaria de endossar a proposta do professor Plonski, expressa na última sentença de seu comentário:

“Oxalá o presente diálogo nas páginas virtuais do Jornal da USP estimule mais leitores a nele se engajar, gerando espaços de interlocução e interação capazes de refinar o ‘autoentendimento da USP.”

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