Preposições à solta: quem é o culpado no “laudo de Boulos”?

Por Marcelo Módolo, professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, e Henrique Braga, doutor pela FFLCH-USP

 10/10/2024 - Publicado há 1 mês
Marcelo Módolo – Foto: Arquivo pessoal
Henrique Braga – Foto: Arquivo pessoal
Na linguagem, as preposições são como aquelas peças pequenas de um quebra-cabeça: aparentemente fáceis de ignorar, mas essenciais para completar a imagem final. Quando fora do lugar, causam uma confusão que pode ser até engraçada, dependendo da situação. Um exemplo curioso disso é a manchete: “Juiz manda excluir posts de Marçal com laudo falso de Boulos”, publicada em 05/10/2024 pelo portal Metrópoles.

Tudo podia ser mais claro, mas “tinha um ‘de’ no meio do caminho”, bagunçando o entendimento e transformando a frase em um suspense digno de filme: a expressão “laudo falso de Boulos” indica que o candidato do PSOL é o responsável pela autoria do tal laudo ou que ele é o alvo das falsas informações? No exemplo, é a preposição “de” o recurso dramático para instaurar a dúvida, não revelando quem é mocinho ou bandido nessa trama.

“Contra” no ringue: quando a preposição quer briga!

Vamos introduzir uma alteração: e se trocássemos o “de” por “contra”? A frase ficaria assim: “Juiz manda excluir posts de Marçal com laudo falso contra Boulos”. A troca faz parecer que seria simples corrigir o texto, uma vez que ela resolve a ambiguidade inicial. Cabe considerar, porém, que ela também traz outras implicações importantes.

A preposição “contra” deixa claro que o laudo está direcionado a Boulos, ou seja, que ele é o alvo do conteúdo falso, e não o autor. Com “contra”, o papel de Boulos como vítima da difamação fica muito mais evidente. Contudo, por um amor excessivo à imparcialidade, um redator jornalístico poderia rechaçar a nova opção: com o uso de “contra”, a frase passa a indicar uma relação de confronto mais direta, sugerindo que o laudo teria sido parte de um ataque deliberado. Embora “contra” esclareça o alvo do laudo, tal preposição adiciona um tom mais acusatório, criando a impressão de uma ação proposital e hostil por parte de Pablo Marçal. Fica a pergunta: essa tomada de posição seria adequada ao contexto eleitoral? Tentaremos respondê-la.

Quando o contexto nos salva da gramática

Um redator cuidadoso, que buscasse evitar a ambiguidade inicial e se sentisse incomodado com o tom acusatório da preposição “contra”, teria ainda outra saída: “Juiz manda excluir posts de Marçal com laudo falso sobre Boulos”. Nesse caso, a preposição deixaria mais explícito que Guilherme Boulos seria o assunto do laudo falso. Fim.

No entanto, é curioso pensar que, no contexto das eleições para prefeito de São Paulo em 2024, até mesmo a ambiguidade inicial provocada pela preposição “de” pode ser contornada pelos leitores. Isso porque se, de um lado, o “de” na manchete (“Juiz manda excluir posts de Marçal com laudo falso de Boulos”) pode gerar dúvidas iniciais (será que Boulos produziu o laudo ou foi vítima dele?), de outro lado, o histórico recente do candidato Marçal e seus ataques constantes a figuras políticas ajuda a orientar a leitura correta.

Levando tal contexto em conta, dificilmente o leitor não chegaria ao sentido correto. A campanha de Marçal tem sido marcada por polêmicas e publicações controversas, o que leva a inferir que o laudo mencionado na manchete se refere a Boulos como o alvo da informação falsa, e não como autor (o que justificaria, inclusive, o uso da preposição “contra”). Portanto, mesmo com a preposição “de” causando ambiguidade à primeira vista, o cenário político e o comportamento do candidato Marçal conduzem à interpretação mais coerente.

No calor de uma eleição tão marcada por “cortes”, o contexto se torna uma ferramenta ainda mais crucial. Ele funciona como um guia que direciona a leitura, especialmente quando há espaço para múltiplas interpretações. No caso de Marçal, seus posicionamentos recentes tornam mais fácil entender o sentido correto da frase, evitando maiores confusões.

Casos como esse reforçam que, para uma leitura competente, dominar as estruturas gramaticais é desejável, mas não suficiente. Em casos nos quais a organização gramatical do enunciado possa abrir margem para ambiguidades, recorrer ao contexto pode ajudar a resolver possíveis mal-entendidos. Mesmo diante de textos que poderiam ser melhorados (se nos permitem o eufemismo), o papel ativo do leitor continua sendo capaz de reestabelecer a verdade. Sem cortes.

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