Palestina e – não ou – Israel

Por Charles Mady, professor da Faculdade de Medicina da USP

 10/11/2022 - Publicado há 2 anos
Prof. Dr. Charles Mady – Foto: InCor-HCFMUSP
Guerras demonstram a que ponto a crueldade humana pode chegar, e como é fácil despertar ódios em sociedades, desenvolvidas ou não. Quando o medo e a sobrevivência são, de forma hábil, utilizados para unir povos contra o “mal”, demoniza-se o oponente, e a única solução é a eliminação do “outro”. Os lados das contendas nunca têm plena razão, não havendo inocentes nessas situações. E, como todos sabem, os vencedores escrevem a História.

Pretendo me ater ao Oriente Médio, analisando racionalmente, e não passionalmente, um assunto de abordagem difícil e perigosa, onde poucos se aventuram, por receios naturais que envolvem a mídia. Antecipo minha crença na existência de dois países, Israel e Palestina, não aceitando a destruição de um para a sobrevivência de outro. Mas, a forma como o processo foi conduzido levou ambos os lados a se impregnar de ódio, cometendo crimes contra a humanidade em nome de suas causas, com ações e reações atingindo uma barbárie que ofende a consciência humana.

A coletividade judaica é representada pelo Estado de Israel, aprovado pela ONU e reconhecido pela maioria de seus membros. Foi uma decisão justa e merecida, para dar cidadania a uma comunidade internacionalizada, vivendo em longa diáspora. Mas mitos foram criados, e justificativas religiosas, históricas e arqueológicas, com divulgações massificadas, penetraram a mídia internacional, de maneira muitas vezes suspeita e incorreta. “Uma terra sem povo para um povo sem terra”, “o povo palestino não existe”: seriam essas afirmações corretas? A região é habitada há milênios, com tradições e culturas próprias. Pode-se criar uma sociedade sobre os escombros de outra? As reações palestinas foram cruéis, não respeitando civis inocentes. O terrorismo de ambos os lados se tornou cada vez mais maligno, com ações como limpeza étnica, bombardeios e atentados indiscriminados em regiões densamente povoadas, prisões lotadas de crianças, punições coletivas, lembrando crimes de guerra cometidos, e condenados, em guerras anteriores, destruições de vilas inteiras, para o repovoamento com indivíduos provenientes de todos os cantos do mundo, que mal conheciam o local. Será que os membros de um povo já nascem terroristas ou religiosos fanáticos, ou adquirem hábitos violentos como consequência da violência sofrida? Disse o ex-primeiro-ministro Ehud Barak que faria o mesmo, se estivesse no lugar deles. “Morte aos árabes” é o lema de caravanas em bairros palestinos. Ódio gerando ódio, em um ciclo interminável. Ódio ao judeu, por ser judeu.

Sou descendente de árabes, e quando lia notícias a respeito de homens-bombas, sentia uma vergonha difícil de descrever. A mesma vergonha sinto hoje, ao assistir às cenas diárias praticadas por um povo com uma cultura humanística invejável, que sofreu os horrores do nazismo, mas que se tornou conivente com ações que ferem a essência do ser humano, assim como o povo alemão o foi na última grande guerra. Em ambas as situações, o medo devidamente trabalhado exacerbou nacionalismos fanáticos, que justificam qualquer ato em nome da sobrevivência. Somos levados a acreditar que temos atavicamente esse perfil destrutivo, tanto individualmente, como coletivamente. A falecida Brunhilde Pomsel, que foi secretária de Goebbels, em entrevista a jornalistas alemães, comenta que o mal não tem limites, ela que conviveu com um dos responsáveis por uma das maiores tragédias da história. Chegou a acreditar que “Deus não existe, mas o diabo certamente existe. Não há justiça. Ela não existe”. Dizia-se agnóstica.

No outro extremo, Ésquilo, em Oresteia, na Grécia antiga, dizia “vamos nos dedicar a domar a selvageria do homem, e tornar suave a vida neste mundo”. Mas como explicar que povos portadores de enormes bases humanísticas cometam crimes indesculpáveis? Povos que sofreram, mas hoje fazem sofrer? Não aprenderam nada com a história? Será que Deus criou povos mais importantes que outros?

É o que as “religiões” de Meir Kahane, Khomeini e outros preconizam, e precursores do sionismo radical, como Jabotinsky, que viveram antes do Holocausto, incutiram numa juventude permeável a esses ensinamentos, assim como o Islam fanático é apresentado a jovens que se impregnam facilmente pela intolerância. Eles estão ganhando força na região, com forte presença na política. No Deuteronômio da Torah está escrito que todo ser vivo em Canaã deveria ser eliminado, para dar lugar ao povo eleito. Acreditam piamente no lado maligno das escrituras. Desde Ben-Gurion, nenhum primeiro-ministro foi contra esses pensamentos, pois todos estimularam a limpeza étnica. O outro lado foi tomado pelo ódio, e hoje assistimos à selvageria consequente. A ONU, ao invés de ter trabalhado pela integração, ficou omissa muito tempo. E o fanatismo teve portas abertas para crescer. O que aprendemos com a história de Al-Andalus, ou Sefarad, está sendo esquecido, em nome de elitismos, sectarismos, racismos, que lembram muito bem períodos obscuros da história, com a conivência de todos. Deixam de lado uma cultura humanística maravilhosa, para viver dentro de um fanatismo doentio.

Como dizia o falecido Desmond Tutu, os estados estariam plantando, e disseminando, terroristas. É triste.


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