O que acontece com as crianças em Gaza precisa mobilizar as universidades do Brasil

Por Francirosy Campos Barbosa, professora da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP) da USP

 18/06/2024 - Publicado há 1 mês
Francirosy Campos Barbosa – Foto: Arquivo pessoal

 

 

Esse silêncio todo me atordoa
Atordoado, eu permaneço atento
Na arquibancada, pra qualquer momento
Ver emergir o monstro da lagoa (Chico Buarque)

Dia 31 de maio de 2024, dia sagrado para os muçulmanos (salat Jummah, oração de sexta-feira), assisti pelo Instagram a mais uma fala de um menino palestino, de nove anos, que perdeu pai, irmão e teve outro irmão preso pelo Estado de Israel. Seu choro chega até mim de uma forma que só os acordes da orquestra de Ennio Morricone conseguem traduzir – são melancólicos e dolorosos. Um homem pergunta a ele:

— Se eu lhe der um presente você fica feliz?

Ele responde:

— Não!

Minha vontade era entrar na tela do computador, me transportar até ele e colocá-lo no colo, cantar todas as músicas infantis e repetir várias vezes: Hasbunallahu wa ni´mal wakil la hawla w ala kuwwata illá billáh/ Deus é suficiente para nós e Ele é o melhor administrador de assuntos. Hasbunallahu wa ni´mal wakil é a súplica que mais ouço os palestinos repetirem, é o dirk (recordação de Allah) diário que faço na madrugada, durante o dia e a noite. Podem tirar tudo de um muçulmano, mas jamais vão tirar sua confiança em Allah (Deus em árabe).

Semanas atrás nos deparamos com a imagem de adultos e crianças mortos após ataque das Forças Armadas de Israel no acampamento de refugiados em Rafah, no sul de Gaza. Isso tirou as poucas horas de sono diárias que tenho. Jamais gostei de compartilhar imagens de pessoas dilaceradas, queimadas e degoladas, mas hoje, nas redes sociais, vivo rodeada por cenas de terror. Escolhi não viver anestesiada, nem fazer parte daquele grupo de pessoas que enchem a boca para dizer: não tenho nada a ver com isso! A omissão também é uma arma que mata. Ver crianças, homens, mulheres, idosos carbonizados e não dizer nada, é sentenciar à morte, ao genocídio, os palestinos, é contribuir com a limpeza étnica de um povo, de uma cultura.

Há 76 anos, os palestinos vêm sendo submetidos ao que alguns especialistas chamam de crimes contra a humanidade. Dentre estes, o apartheid é a fase nefasta da violência cotidiana que eles enfrentam desde a Nakba (catástrofe) em 1948. Há 40 anos tenho contato com a Causa Palestina, sempre soube o que era o colonialismo, o apartheid, ou a limpeza étnica, e que, por não terem um exército, certamente os palestinos teriam que construir seu próprio meio de resistência. Como os palestinos poderiam lutar pelo direito de ir e vir em sua terra? Como poderiam sair da linha da pobreza à qual estavam submetidos? Como um povo retoma a sua dignidade?

Nesses oito meses de mortes violentas, de destruição, chegamos a dados assustadores – são quase 40 mil palestinos mortos, dos quais 15 mil são crianças. Há crianças que tiveram partes do corpo amputadas, outras que estão morrendo de fome. Mais de 80% da população teve que sair de suas residências, no entanto, seguem em situação de vulnerabilidade, podem ser bombardeados a qualquer momento, como aconteceu em Rafah. Praticamente tudo foi destruído, e dói saber que 12 universidades foram bombardeadas por Israel, matando professores e alunos. Não há mais vida acadêmica na Palestina.

Recentemente, um grupo de intelectuais e artistas encaminhou ao presidente Lula uma carta solicitando que corte relações com o Estado de Israel. É urgente que algo impeça definitivamente Israel de cometer as atrocidades que assistimos até o momento. Assisto com entusiasmo às manifestações em várias universidades pelo mundo afora. Professores e estudantes que não se intimidam com a polícia, nem com seus gestores e se colocam ao lado do povo palestino. Na USP e Unicamp estudantes se mobilizam e dão exemplo da importância que é lutar para que palestinos sobrevivam. Foi criada a Rede Universitária de Solidariedade à Palestina que vem contribuindo com informações importantes para a compreensão do contexto em que vive essa população há quase oito décadas. A Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto aprovou em sua Congregação, em 18 de abril de 2024, uma moção de apoio à Palestina somando-se à Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas.

Mas ainda é muito lento e silencioso o processo de apoio aos palestinos na universidade, me pergunto qual seria o motivo de tamanha apatia diante da dor do outro. Enchemos reuniões falando de artigos de impacto, internacionalização, mas “esquecemos” de colocar na pauta a construção de um Corner Palestino na nossa universidade, esse espaço que incentiva o intercâmbio acadêmico e a mobilidade. Mesmo que não haja mais universidades na Palestina, ter o Corner é simbólico para a reconstrução desse país. Tenho certeza de que muitos docentes e estudantes estariam dispostos a construí-lo, possibilitando que a memória do que foi permaneça, e renasça após toda a violência que assistimos.

As universidades são espaços de discussão, de resistência, de promoção da saúde física e mental, do conhecimento. Sendo a universidade esse espaço de pulsão de vida, só podemos esperar que nela não caiba o silêncio diante de injustiças.

Assim como Belchior,

Penso que nós podemos muito, nós podemos mais.
Amar e mudar as coisas me interessa mais

A mudança está em dar visibilidade ao que acontece com os palestinos neste momento. Para que nenhuma criança palestina seja assassinada. Sigo na esperança – porque esperançar é verbo de ação, como diria Dom Paulo Evaristo Arns. Que o espaço universitário se faça voz e força para amar e mudar as coisas.

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