O papel das ciências humanas

Jean Pierre Chauvin é professor de Cultura e Literatura Brasileira da ECA-USP

 24/04/2019 - Publicado há 5 anos

Jean Pierre Chauvin  – Foto: Marcos Santos/USP Imagens

De tempos em tempos, nós, que pesquisamos e discorremos sobre objetos relacionados à cor, ao som e à forma, precisamos vir a público para desdizer medidas estreitas e reafirmar o papel das humanidades, ou ciências humanas, ou soft sciences, perante um mundo cada vez menos favorável à diversidade e cada vez mais standard, como supuseram Herbert Marcuse e Edgar Morin[1], entre as décadas de 1960 e 1970. Decorre daí a ironia máxima: os terráqueos ocupam hemisférios metrificados, mas sem maior espaço para a poesia, o exercício da sensibilidade e a reflexão. Na hipervalorizada Era da Comunicação, cabe um pouco de quase tudo; porém anda bem menor a preocupação com a linguagem.

Isso talvez aconteça porque determinadas matérias, classificadas como conteúdos “das humanidades”, sejam concebidas e percebidas não como importantes em si mesmas, mas como apêndices ou, quando muito, ferramentas de apoio a outras áreas do conhecimento. Por exemplo, é comum relegar pesquisadores de letras, inseridos em grupos de estudos multidisciplinares, a papéis considerados secundários, dentre eles, a incumbência de redigir breves enunciados ou de revisar o texto alheio (em todos os aspectos que ele comporta: conteúdo, expressão, gênero, tópica, estilo, ortografia, sintaxe, coesão, coerência, forma etc.).

Evidentemente, não se está a sugerir que os profissionais de ciências humanas rejeitem o diálogo com outras áreas do saber; é justamente o contrário. Aliás, se o trânsito entre áreas do conhecimento estivesse interditado, não teríamos vários médicos a fazer literatura, como Manuel Antônio de Almeida, João Guimarães Rosa ou Moacyr Scliar. Isso sem contar o advogado Oswald de Andrade, o farmacêutico Carlos Drummond de Andrade ou o engenheiro Euclides da Cunha.  Também houve aqueles que atuaram como engenheiros do verso, como João Cabral de Melo Neto, franco admirador das estéticas de vanguarda e da arquitetura concebida por Le Corbusier:

 “O lápis, o esquadro, o papel;
o desenho, o projeto, o número:
o engenheiro pensa o mundo justo,
mundo que nenhum véu encobre”[2].

Um tanto resignados ou amortecidos, frequentemente somos vistos como profissionais de menor calibre, cujo trabalho teria pouca relevância e se pautaria pela falta de seriedade (não salvamos vidas, não projetamos moradias, não consertamos carros ou eletrodomésticos). Em determinados contextos, costuma-se caracterizar as disciplinas que lecionamos como itens de “perfumaria” acadêmica. Essa discussão, banalizada desde que se passou a veicular a hipótese de que vivíamos no mundo pós-histórico, pós-verdadeiro e pós-ideológico – em aderência ao chamado “pós-moderno” – é bem mais antiga do que se pensa.

No Ocidente, a controvérsia estava na base da filosofia socrática, cinco séculos antes de Cristo. Bastaria ler o que diz o Górgias de Platão, a contrapor sofistas e filósofos. No diálogo, a personagem Sócrates descreve a retórica como procedimento vicioso praticado por sofistas. Arte supérflua, ele aproxima a retórica da cosmética e da culinária: o domínio de suas técnicas permitiria temperar qualquer assunto com colorido e sabor, sem que a verdade estivesse assegurada. Esse componente binário, característico no pensamento platônico, será reabsorvido pelo Cristianismo, desde sua disseminação no mundo romano, séculos depois.

Seria ocioso relembrar o papel fundamental dos Studia Humanitatis, tomada a Cícero por Coluccio Salutati, no século XIV, em contraposição ao paradigma que norteava o ensino eclesiástico. Tampouco valeria relembrar o papel da gramática, da retórica e da lógica, no Trivium – fundamentos do ensino jesuítico, entre 1540 (ano de fundação da Companhia de Jesus, por Ignácio de Loyola) e 1759, quando a ordem religiosa foi expulsa no reino português, em maior parte graças às maquinações de Sebastião José de Carvalho e Melo, ministro superpoderoso de D. José I. Em termos que dizem respeito à educação, recorro a Roxane Rojo, para relembrar os vínculos entre o que propunha muito antes de nós:

“Pensar as mudanças curriculares como determinadas por mudanças sociais mais amplas implica um tratamento transdisciplinar que dialoga com um primeiro saber de referência, que é a história da escola e, em especial, a história das disciplinas escolares. No caso da disciplina de língua portuguesa no Brasil, ela é oficialmente introduzida nos primeiros currículos oficiais para o ensino secundário somente em 1838, de maneira bastante tímida, convivendo com a formação clássica do trivium – gramática, retórica e lógica ou filosofia – de maneira quase instrumental. Isto é, indiciando um ainda tímido movimento de formação nacional, o português é introduzido como disciplina dos anos iniciais do currículo do Colégio Pedro II, com o intuito de preparar – de maneira mais fácil, pois em língua nacional – o estudo do trivium que se exercia em latim”.[3]

Em nosso tempo, a implantação de plataformas e currículos on-line estimulou a que se aplicassem pressupostos, métodos e objetivos, quase sempre oriundos das ciências biológicas e exatas, às humanidades. Não se trata de nos posicionarmos contrariamente aos avanços da ciência, às teorias da astrofísica ou à evolução da terapêutica médica; mas de reivindicar a importância das categorias de tempo, ação e espaço em suas múltiplas formas de imitação, registro ou representação: fundamentos do trabalho realizado pelo cientista humano.

Um manuscrito italiano redigido no século XV terá maior ou menor relevância que um tratado de medicina do século XIX, ou um manual atualíssimo de autoajuda, coalhado de lugares-comuns, a encadernar felicidades fáceis e simplistas do nosso tempo? Coincidência ou acaso, as perguntas mais óbvias não costumam ser enunciadas.

Por exemplo: “Por que a historiografia e o ensino de história costumam ser alvejados pelos regimes totalitários?”; “Por que uma parte da escola brasileira ainda subestima o papel da geografia, da filosofia e da sociologia, na trajetória dos estudantes?”; “Por que grande parte dos alunos lê resumos, em lugar das obras literárias recomendadas pelos vestibulares?”. Tento responder: em parte porque o lucro e, com ele, a ética da recompensa tomaram o lugar dos conteúdos e métodos que deveriam ser reservados a estimular a atuação de seres humanos melhores.

A esse respeito, convido a(o) internauta a realizar uma breve pesquisa. Adivinhará quais os cursos mais bem avaliados na Universidade de São Paulo? Ora, ora. Justamente aqueles que têm as “humanidades” por objeto, causa e efeito. Resulta daí a pergunta fundamental: qual será a importância das ciências humanas numa sociedade que está a se desumanizar?

A resposta deveria ser óbvia; mas, a julgar pela extinção da ideia ancestral de alteridade, que respalda a imposição tirânica de padrões e move a indiferença com relação aos colegas de dor e ofício, daqui para frente precisaremos relembrar, mais amiúde, os múltiplos papéis das humanidades e a trajetória empenhada de seus dignos representantes, dentro e fora da sala de aula.

Reduzir o conhecimento ao utilitarismo acrítico; avaliá-lo estritamente, conforme a maior ou menor aplicabilidade ou rentabilidade financeira anunciada pelo diploma parecem ser sintomas de uma mentalidade megaindividualista que endeusa as tecnologias e aplica parcialmente a ética corporativa, mas que perdeu a capacidade de conviver com o outro e que, no âmbito acadêmico, desaprendeu como e por que estabelecer conexões mais espontâneas (e menos desumanas) entre disciplinas, produtos e pessoas.

 

[1] Cf. Herbert Marcuse, A ideologia da sociedade industrial: o homem unidimensional, 4ª ed., trad. Giasone Rebuá, Rio de Janeiro, Zahar, 1973; Edgar Morin, Cultura de massas no século XX – neurose e necrose, 11ª ed., trad. Maura Ribeiro Sardinha; Agenor Soares Santos, Rio de Janeiro, Forense Universitária, 2018.

[2] João Cabral de Melo Neto, Obra Completa, Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 1994, pp. 69-70.

[3] “Gêneros de discurso/texto como objeto de ensino de línguas: um retorno ao trivium?”, in Ignês Signorini (org.), (Re)discutir texto, gênero e discurso, São Paulo, Parábola Editorial, 2008, pp. 78-9.


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