O essencial porém ainda insuficiente texto substitutivo para o marco legal dos jogos eletrônicos

Por Thayla Bicalho Bertolozzi, doutoranda no Instituto de Relações Internacionais (IRI) da USP

 Publicado: 17/04/2024     Atualizado: 22/04/2024 as 18:58
Thayla Bicalho Bertolozzi – Foto: Currículo Lattes
Enquanto o texto do Projeto de Lei nº 2.796 de 2021 (Marco Legal da indústria de jogos eletrônicos e jogos de fantasia) sequer fazia menção aos jogos eletrônicos de console (videogame), o substitutivo do Senado, aprovado em 13 de março, e pela Câmara em 9 de abril, veio em boa hora para não somente incluí-los, como também melhor delimitar quais seriam os jogos abrangidos pela lei – suprimindo até mesmo aqueles voltados para apostas e prêmios derivados de resultados aleatórios do seu escopo.

Entretanto, conforme já abordado anteriormente, embora não seja possível igualar jogos desenvolvidos essencialmente para premiar com base em resultados aleatórios aos demais jogos de diversos gêneros que, eventualmente, têm algumas premiações semelhantes, deve-se questionar quais os limites e critérios que definem, por lei ou qualquer outro meio de regulação aplicável, até onde os desenvolvedores podem ir com tais mecanismos de recompensa.

As chamadas loot boxes são, há muito tempo, objetos de estudos em Psicologia e áreas afins do conhecimento, especialmente nos jogos digitais. Conquanto seja mais comum encontrar preocupações relacionadas aos simuladores de jogos de azar e similares, como vêm ocorrendo com o Jogo do Tigrinho e outros, há inúmeros jogos de outros gêneros que têm tido seus mecanismos de recompensa baseados em sistemas aleatórios (como um “baú surpresa”, que garante itens especiais – ou não, a depender de sua sorte – a um preço pago em reais) simplesmente negligenciados.

Dos antigos MMORPGs (Mu Online, Ragnarok, World of Warcraft, Perfect World etc. aos seus sucessores Aion, Lost Ark, Black Desert e outros) aos demais gêneros, como MOBA (League of Legends, DOTA 2), ação e luta com elementos de MMORPG (Grand Chase, Elsword), Battle Royale (Apex Legends, Fortnite, PUBG), FPS (Counter Strike ou CS:GO, Call of Duty, Battlefield, Overwatch) e tantos, tantos outros gêneros e títulos, todos têm algo em comum: sendo jogos pagos ou gratuitos, possuem itens passíveis de serem comprados com dinheiro real ou virtual (utilizando-se do dinheiro real para obtê-lo ou, quando possível, de muito tempo extra de tela para conseguir os mesmos resultados) e, dentre estes, os famosos “baús” de recompensas aleatórias.

Não obstante o substitutivo tenha sido cirúrgico ao acrescentar, em seu Art. 17, que as ferramentas de compras e transações comerciais devem ser pré-configuradas com restrição a crianças, além de garantir o consentimento de seus responsáveis, pergunto-lhes: até hoje, quantos responsáveis sabem quais títulos seus filhos jogam, ou fazem ideia da existência de tais transações? Para além do artigo supracitado – que, inclusive, não abarca adolescentes -, não há qualquer outra menção ao tema, nem mesmo previsão de responsabilização, por parte das empresas desenvolvedoras e distribuidoras, no sentido de ampliar e tornar clara tal informação a crianças, adolescentes e seus responsáveis.

De um texto que, antes, não possuía nenhum dispositivo de proteção a crianças e adolescentes, nem mesmo a usuários adultos, fosse em matéria de privacidade e proteção de dados pessoais, de design e desenvolvimento sem indução ao erro, ao azar ou ao vício, de discriminação, de transparência ou de devido processo e apelação em denúncias, é inegável que a contribuição do Senado trouxe elementos fundamentais para tentar garantir o melhor interesse de crianças e adolescentes.

Tal cenário é evidenciado pelo protagonismo de seu Capítulo III – Da proteção das crianças e dos adolescentes que, ao incluir tais temas, salienta certa consonância com princípios para regulação de plataformas que, não raro, possuem dispositivos igualmente aplicáveis aos games – vide Santa Clara Principles, Paris Call, The Aequitas Principles on Online Due Process, Manila Principles e Christchurch Call, conforme já abordado em dissertação de mestrado sobre a Twitch, site frequentemente utilizado para streaming de jogos.

Todavia, é fundamental enfatizar a responsabilidade não somente das empresas envolvidas, mas também dos próprios formuladores de políticas para que todos possam se atentar à complexidade do assunto. A partir do momento em que uma lei define que microtransações devem ter restrições, por padrão, quando realizadas por crianças, não somente é possível imaginar que nenhum jogo jamais estará em conformidade com a referida lei – que provavelmente terá este aspecto sistematicamente ignorado -, como também que, em caso de não ser ignorado, jogos de empresas estrangeiras certamente precisarão de uma adequação inviável em servidores que não são exclusivos para jogadores brasileiros – o que poderá, inclusive, afetar sua disponibilidade “oficial” no país em caso de servidor local, porém não deixará de afetar a disponibilidade de servidores externos acessados por brasileiros.

Por estes e tantos outros motivos, enfatizamos, mais uma vez, a importância de um debate multissetorial e internacional cada vez mais amplo. A solução não é fácil, mas certamente estamos começando a dar passos para encontrá-la – ou criá-la.

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