Marcus Fabiano Gonçalves conta a canção dos tradutores

Jean P. Chauvin é responsável pela disciplina O Romance Policial de Agatha Christie na Escola de Comunicação e Artes da USP

 30/07/2018 - Publicado há 6 anos

Jean Pierre Chauvin – Foto: Marcos Santos/USP Imagens

[Saint John] Perse não se cinge a predicar ou enaltecer o mar. Ele cuida de constitui-lo e apresentá-lo em sua natureza simbólica ao fabricar uma língua especial, talhada por seu estilo concomitantemente difícil e fascinante, capaz de sugar o leitor em violentos repuxos e de expeli-lo em abomináveis ressacas sem jamais esgotar sua fonte maravilhosamente arrebatadora (Marcus Fabiano Gonçalves).[1]

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Na “Introdução” a Escolhedor de Palavras, Marcus Fabiano Gonçalves afirma que “A oxigenação semântica, a reativação lexical de vocábulos que dormitavam no esquecimento ou em uma reputada ancianidade, o reabastecimento vital dos repertórios metafóricos e metonímicos fazem de um tradutor como Bruno Palma uma potência ativa e discretamente penetrante de nossa literatura”.

Salvo engano, é síntese que se pode aplicar a raros artífices da palavra, como é o caso desse tradutor e poeta, cuja trajetória, por sinal, pauta-se pela religião e pela literatura. Em 1957, tornou-se sacerdote pelas mãos de Dom Helder Câmara. Em 1980, conquistou o prêmio Jabuti pela tradução de Anabase, de Saint-John Perse. Nove anos depois, recebeu a comenda de Chevalier dans l’Ordre des Arts et des Lettres do governo francês.

Após o excelente texto introdutório – em que Gonçalves revela clareza, ao explanar conceitos fundamentais (técnica como conjunto de procedimentos e, no sentido original, sinônimo de arte; exegese, como operação que faculta trazer significados “para fora do texto”; signo, como articulação de coisa, sentido e forma etc), o crítico passa em revista autores e obras fundamentais com que Bruno Palma trabalhou com louvável empenho ao longo de décadas.

O gigantesco trabalho de Bruno Palma em torno de Amers (de Saint-John Perse) – tradução publicada em 1957 –, sugere a Marcus Fabiano Gonçalves que a maior dificuldade reside em “Transpor isso ao português”, pois teria demandado “prudente organização de estudos sonoros e meticulosos mapas do léxico do poeta, autênticas cartografias de um labirinto, estabelecidas para que as dificuldades interpretativas, ínsitas aos originais, não degenerassem em exagerada glosa ou em qualquer facilitação didática. Assim, se Amers é considerado indiscutivelmente um poema difícil, Marcas Marinhas também o é na sua mais justa proporção”.

Mas como Bruno Palma procede, enquanto traduz? Com humildade, sabedoria e perseverança. Ricamente ilustrado com imagens que reproduzem os cadernos de notas do tradutor e poeta, o livro evidencia o respeito com que Palma se aproxima do texto original e a meticulosidade com que traduz determinadas ideias para o Português. Decorre daí encontrarem-se “[…] longas listas de verbos de movimentos e minuciosas tabelas em grandes folhas de formulários contínuos de computador, ambas confeccionadas na tentativa de incorporar as soluções de outros tradutores que enfrentaram problemas semelhantes aos seus em alemão, italiano, espanhol e inglês”.

O mesmo rigor pode ser verificado na tradução que preparou de Duplo Canto e Outros Poemas, de François Cheng, que resultou em uma “edição bilíngue acompanhada de cronologia, estudo crítico e farto aparato de notas”. Outra virtude da obra reside no fato de ter sido “Elaborada em um lugar bem protegido dos frequentes deslumbramentos com os exotismos do Oriente”, em acordo com Gonçalves.

Dito de outro modo, ao traduzir a poesia de Cheng, Bruno Palma teria vertido para a nossa língua um rico sistema de códigos que ultrapassam o estatuto pragmático da palavra e a acepção meramente denotativa da palavra: “Em Cheng, o mentalismo e o gramaticalismo da tradição ocidental, essencialmente apofântica e simbólica no seu desenvolvimento de auge fenomenológico, cede lugar à floração epifânica de imagens impregnadas por uma sutilíssima apreensão panteísta e antropomórfica da natureza”.

O que mais chama a atenção, em Escolhedor de Palavras, é a problematização facultada pelo seu autor. Por aí se depreende que avaliar o vulto de Bruno Palma seja tarefa para poucos. Ao eleger como corpus de pesquisa a obra de um homem de notável conhecimento multidisciplinar, guardião amoroso das palavras, tradutor de culturas e visões sobre o mundo, Marcus Fabiano Gonçalves convida-nos a rever conceitos e alargar o sentido de palavras – hoje utilizadas correntemente, às vezes com sentido invertido. Por isso, o pesquisador vê necessidade em resgatar o perfil etimológico e a face histórica de diversos termos, como é o caso de “fidelidade”, no campo das representações literárias:

[…] no domínio estético-literário essa fidelidade ao original não pode ser apreendida enquanto um simples corolário da divisão social do trabalho intelectual. Da relação hierárquica entre filósofos e discípulos no mundo antigo, passando-se pelo empenho dos monges copistas nos mosteiros (com seus pergaminhos de peles e suas tabuinhas de cera), chega-se aos ateliês coletivos renascentistas, organizados pelo sistema mestre-aprendiz. Em tais ateliês não se nutria tanto apego à atribuição de uma autoria individual às obras, consideradas ótimas inclusive como boas cópias e até réplicas, pois essa noção de fidelidade também representava, à época, uma submissão geral ao cânone vigente e não um específico culto à singularidade.

O livro se espraia para os domínios da cultura que não prescindem de formulação mais precisa. Sob essa perspectiva, a discussão proposta por Gonçalves se soma a um debate que já dura mais de três décadas, dentro e fora da universidade, em que se contrapõem anacronismos nativistas e análises do caráter pragmático do texto – aqui compreendido como representação situada temporal e espacialmente, no contexto da historiografia literária luso-brasileira.

Portanto, um dos saldos de Escolhedor de Palavras está em relativizar o caráter estanque e positivista que orientou a nomeação e configuração dos chamados períodos literários, artificialmente situados entre movimentos de ruptura (precedentes) ou de renovação estética (subsequentes). A partir do final do século XVIII, literatura e teleologia passaram a constituir um par aparentemente indissolúvel de palavras.

A arte do bom tradutor, também implica captar a mentalidade do autor de que se pretende aproximar em bom vernáculo. Isso explica por que Bruno Palma se muniu de múltiplos e abrangentes conhecimento (tanto linguísticos, como culturais, filosóficos, históricos etc), para captar, da melhor forma, o verso de Cheng

Justamente na tentativa de situar o leitor de nosso tempo, a discussão em torno do maior índice de “originalidade” ou apropriação plagiária soa imprecisa, especialmente se levarmos em conta os preceitos greco-latinos da Antiguidade, os paradigmas que nortearam a composição de tratados e manuais de etiqueta, retórica, poética, discrição etc, que circularam entre o final da Idade Média e o final do século XVIII.

Isso também leva o pesquisador a instigar o seu leitor a abandonar certas posições de relativo conforto, em que se reiteram lugares-comuns e imprecisos, que interferem na arte e em sua performance: “[…] quem queira e possa que vá procurar saber por onde andará o Beethoven original entre as interpretações de um Herbert von Karajan, um Leonard Bernstein e um Pierre Boulez”.

É que, para Marcus Fabiano Gonçalves, o papel do tradutor – especialmente quando se trata de um artífice notável, como é o caso de Bruno Palma – é tarefa difícil de mensurar:

Não se pode avaliar, a curto prazo e sem arriscadas conjecturas, o serviço que presta à cultura de uma comunidade o homem que se consagra ao ingresso de novos autores de altíssima expressão na sua língua. Auxiliando os próprios escritores a tomarem consciência de seus processos criativos, os grandes tradutores sempre atuaram como dispositivos hermenêuticos de irrigação da literatura. Tradutor e poeta buscam ai a luz, mas vivem da sombra, da natureza umbrática do discurso.

Pode-se dizer que Gonçalves percorre movimento análogo ao de Bruno Palma, na aproximação do seu corpus de estudo. Valendo-se da precisão dos conceitos e do lugar da cultura, respeitadas as circunstâncias de sua produção e recepção, o estudioso recorre aos labirintos ora construídos esteticamente, ora desvelados pela linguagem. Após sintetizar as virtudes encontradas nas traduções de Bruno Palma, o livro ainda traz a entrevista estabelecida com o frei e poeta.

Se o leitor experimentou dúvida, ou até mesmo alguma dose de desconforto, enquanto lia os capítulos anteriores, é chegado o momento de precisar palavras, elevar os signos ao patamar da melhor poesia, discutir a tradução como procedimento artístico, artesanal. Ao discorrer sobre as diferentes acepções suscitadas pela obra de Saint-John Perse, o entrevistado observa que: “[a tradução] passou por etapas de compreensão e de amadurecimento sobre as intenções profundas da sua obra, e dos processos que foram (também progressivamente) usados pelo poeta para encontrar ou adquirir o seu tom pessoal”.

A arte do bom tradutor, também implica captar a mentalidade do autor de que se pretende aproximar em bom vernáculo. Isso explica por que Bruno Palma se muniu de múltiplos e abrangentes conhecimento (tanto linguísticos, como culturais, filosóficos, históricos etc), para captar, da melhor forma, o verso de Cheng: “É fatal essa característica da poesia de François Cheng – a presença marcante da cosmologia taoista na sua obra poética – tenha influenciado o meu processo de tradução dessa obra, visto que traduzir bem exige assumir como sua a maneira de pensar e de exprimir o mundo própria do autor do qual se traduz”.

Admitir que o ofício de traduzir ressignifica a própria concepção (linguística e mental) de quem assume tarefa de tamanha responsabilidade é sintoma de humildade: virtude dentre as que mais transparecem nas palavras de Bruno Palma.

Escolhedor de Palavras é livro que sugere abordagem múltipla. Lido “de dentro para fora” – como sugere o também exegeta Marcus Fabiano Gonçalves –, faculta percorrer um trajeto que vai de Perse e Cheng à sua tradução em língua portuguesa; conceder a determinadas palavras o estatuto de categorias (portanto, situadas cronológica e espacialmente); e colocar em diálogo encantatório o ofício do tradutor/poeta e a escavação cuidadosa, capaz de inúmeros achados, empreendida por um pesquisador de inegável estatura.

Afora o pouco que se disse, cumpre registrar que esse poderoso livro resulta de mais uma produtiva colaboração entre alunos e professores do curso de Editoração da ECA, USP, viabilizada pela parceria entre a Editora Laboratório Com-Arte, a Lis Gráfica e a Edusp. Diante de exemplares desse porte, e concebidos com tamanha qualidade, poderíamos recorrer ao chavão de que há livros e Livros. Neste caso em especial, cabem todas as honrarias: obra maior, a destacar em itálico e Maiúsculo.

 

Marcus Fabiano Gonçalves. Bruno Palma, Escolhedor de Palavras: Ensaio sobre a Arte e o Ofício de um Tradutor. São Paulo: Com-Arte, 2017, 184 p.

[1]     Bruno Palma, Escolhedor de Palavras, p. 37.

 

 

 


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