Qualquer transformação que se deseje operar implica levar em consideração as bases culturais da sociedade. Uma definição possível de cultura: muitas formas de organizar o social. Ou, como propõe Stuart Hall, em Da diáspora: identidades e mediações culturais: “são práticas vividas que capacitam uma sociedade, grupo ou classe a experimentar, definir, interpretar e dar sentido às suas condições de existência”.
As dinâmicas culturais contemporâneas são fruto da efervescência de práticas alavancadas por grupos diversos vinculadas a questões de gênero, raça, etnias, classe, território, cosmologias, dentre outras; espaço conflituoso em que a invenção coletiva de valores, símbolos, comportamentos e ideias evidencia a multiplicidade de sentidos e a disputa em torno de pautas e epistemologias diversas. Cultura, portanto, é complexidade.
Assim sendo, seu entendimento não se conforma mais a um conceito central, restrito, linear, hegemônico, singular, único e menos ainda estabelece uma relação exclusiva ou de identificação direta entre arte e cultura. Uma concepção complexa e poética de cultura com as dúvidas, inquietações, questionamentos, estranhamentos que ela provoca, seja na teoria ou na prática, extrapola essa “dependência” ou exclusividade, procurando repensá-la a partir de um viés mais crítico, plural, ampliativo, democrático, participativo, descentralizado e mutante. Em tal conjuntura, a esfera da cultura é compreendida em tensionamento dentro das dinâmicas socioculturais, tecnológicas, geopolíticas e econômicas contemporâneas. A cultura configura-se, portanto, em campo/interface em constante transformação, em processo, resultante da invenção coletiva e interativa de ações, expressões, valores, símbolos, comportamentos e ideias, promovendo a multiplicidade de sentidos e a disputa na arena pública em torno de pautas múltiplas.
A cultura, ou melhor, a interculturalidade, as artes, as ciências e outros saberes, exercem na contemporaneidade papel fundamental na consolidação democrática e no enfrentamento de questões urgentes no âmbito local, nacional, assim como planetariamente. Muitos são os desafios, como claramente expostos pelos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU: “Um apelo global à ação para acabar com a pobreza, proteger o meio ambiente e o clima e garantir que as pessoas, em todos os lugares, possam desfrutar de paz e de prosperidade”. As bases culturais de uma sociedade são determinantes para a formulação de qualquer transformação que se deseje operar. A contribuição neste sentido é prioritariamente plural, coletiva e em rede.
Cabe destacar que entendemos a interculturalidade como conceito que define uma perspectiva, descreve processos e estimula práticas de interação entre culturas que reconhecem as diferenças e trabalham em favor da eliminação das desigualdades. A noção põe em evidência as interseções múltiplas (de etnia, classe, gênero, nacionalidade etc.) que permeiam as relações entre configurações culturais e supõe, sobretudo, um diálogo entre culturas que não justifica nem reforça as relações de subordinação, antes, assume o compromisso de reconhecer as desigualdades e implementar políticas destinadas a reduzi-las.
A complexidade cultural também se relaciona aos rumos traçados pelas tecnologias, não só as computacionais, que são dominantes, mas aquelas, tantas outras, desenvolvidas por outras etnias, cosmologias, como em outros contextos, territórios e dinâmicas socioculturais.
A menção às redes evoca a figuração da internet, idealizada para conectar todos a tudo. No entanto, passadas algumas décadas da sua criação, é urgente atuar criticamente frente às dinâmicas de sua privatização e concentração por grandes conglomerados. A construção, atualização e manutenção de redes – não só a internet – verdadeiramente distribuídas e democráticas, em contraposição às formas que atuam segundo o paradigma centro-periferia, estão na ordem do dia para as ações tecnopolíticas na cultura e nas artes.
Frente à dominância das redes centralizadas – das estruturas de governo e gestão, e de apropriação do comum – é fundamental que sejam propostos novos paradigmas. Sua descentralização, incorporando a lógica das redes distribuídas, que germinam ramificações entre coexistências, é uma condição-chave nesse processo. Sensibilidade espaço-temporal e atuação simultaneamente sistêmica e situada são características dessas redes complexas que se pode imaginar como rizomas do comum, necessariamente interculturais e participativas.
O adensamento do processo de democratização está interconectado à participação cada vez maior e mais ativa da sociedade na arena pública e na tomada de decisões. Não se trata de simples consulta ou de criação de conselhos consultivos, mas conselhos deliberativos, de efetiva tomada de decisões. De maneira sintética, fazer com e não fazer para. Atacar as estruturas de exclusão exige que os beneficiários das políticas públicas se tornem sujeitos e não simples objetos da ação pública. A cultura e as artes têm papel fundamental para que tal perspectiva se consolide.
É preciso assumir, como ponto de partida, que a cultura “é o flexível” (como diz Michel de Certeau, em A cultura no plural) e será sempre um campo de incertezas; está em permanente construção pela prática coletiva de seus membros, configurando-se em esfera de conflito, performativa, interativa, que promove a experiência do diverso, a capacidade de afetar e ser afetado, o que se produz pela negociação com as diferenças, a invenção de outros formatos de agenciamento produzidos pela expansão das vozes, dos desejos e das demandas.
Uma questão central para a ação no campo da cultura é, portanto, a restauração e a ampliação das instâncias de participação e de incentivo aos processos coletivos, extintos ou enfraquecidos, fortalecendo sua institucionalidade. Igualmente importante é investir na estruturação de arquiteturas de encontro e de diálogo intercultural que permitam aos diferentes sentidos, que produzem sujeitos e grupos, espaços de circulação e disputa na arena pública.
A diversidade cultural, o fazer coletivo, a troca de saberes e a ampliação da esfera do ser são elementos orientadores da agenda a ser proposta, bem como o incentivo à formação de redes, tendo por base os nexos destacados, a saber: descentramento, interculturalidade e participação. Alguns indicativos para políticas, programas e ações, pensados de maneira integrada, estruturam o desenho inicial de nossa proposta, ainda em processo, de maneira a abarcar a cultura em sua complexidade: dimensão econômica; gestão administrativa; infraestrutura de equipamentos culturais; patrimônio e memória; formação cultural e artística; fomento à cultura em sua diversidade; inovação científica e tecnológica.
Por fim, o estreitamento das relações entre Universidade e Sociedade buscado pelo programa Eixos Temáticos deve ser compreendido como via de mão dupla; em outras palavras, que as reflexões e propostas endereçadas à sociedade interpelem também a Universidade.
*O Eixo Cultura e Artes é formado pelas professoras e pelos professores: Ana Cecília Arias Olmos, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, Claudio Mubarac, da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP, David Sperling, do Instituto de Arquitetura e Urbanismo (IAU) da USP, Esther Império Hamburger, da ECA-USP, Gabriela Pellegrino Soares, da FFLCH-USP, Lucia Maciel Barbosa de Oliveira, da ECA-USP, Márcia Lima, da FFLCH-USP, Martin Grossmann, da ECA-USP, Silvana Nascimento, da FFLCH-USP, Maurício Pietrocola Pinto de Oliveira, da Faculdade de Educação (FE) da USP, e Rosenilton de Oliveira, da FE-USP.