Com racismo não há jogo

Por Celso Luiz Prudente, apresentador do programa “Quilombo Academia” da Rádio USP e livre-docente pela Faculdade de Educação da USP (FE-USP), e Rogério de Almeida, professor da FE-USP

 30/05/2023 - Publicado há 11 meses     Atualizado: 05/06/2023 as 16:03
Celso Luiz Prudente – Foto: Arquivo pessoal
Rogério de Almeida – Foto: Lilian Curiel Passeri/FE-USP

 

Uma ferocidade racista vem tentando abater o sucesso internacional do craque negro Vinicius José Paixão de Oliveira Júnior. Foram sucessivas tentativas de provocações criminosas, reeditando os rituais da inquisição, da Ku Klux Klan, do nazismo e do fascismo. Tais racistas, impregnados pela cegueira de uma pretensa supremacia branca, têm usado o futebol como arena para fragmentar, com ações práticas e simbólicas, o apelo da telúrica ginga afro-brasileira, encarnada pelo jovem jogador.

Sartre registrou que o homem branco viveu mais de três mil anos olhando sem ser olhado. Esse olhar branco tem se incomodado com a corporalidade africana de Vini Jr., mas o menino não se intimidou e devolveu o olhar, encarando com firmeza o jogo da irascibilidade que tem se armado contra ele. Apontamos uma certa analogia dessa situação com o curta-metragem intitulado O dia em que Dorival encarou a guarda (1988), de José Pedro Goulart e Jorge Furtado, com o protagonismo do ator negro João Acaiabe. O enredo traz um afrodescendente que chega ao seu limite, exigindo tomar banho em um sistema presidiário totalmente desumano, endereçado aos não brancos. Vini tem exigido, igualmente, seu direito de jogar bola, de atuar em sua profissão.

Esses recorrentes exemplos de racismo no futebol mundial, ainda que mais frequentes na liga espanhola, com as omissões criminosas dos promotores do evento e demais autoridades, guardam estreita relação simbólica com as práticas empreendidas pelos tribunais inquisitoriais, pela Ku Klux Klan, pelo nazismo e pelo fascismo. O ponto de convergência está no cinismo litúrgico da mentira e do ódio e no voraz ritual de morte que se tenta impor ao diferente. O boneco enforcado em lugar público, mimetizando o atleta, é exemplo desse paroxismo simbólico.

A retomada de uma moral nazifascista, associada ao vampirismo da superioridade racial, tem se propagado neste início de século de maneira preocupante, pois traça uma linha de continuidade com as torturas outrora praticadas. O famoso golpe chamado “mata-leão”, que comprime a garganta da vítima, é um exemplo dessa nefasta forma de flagelo, que simbolicamente representa a tentativa de impedir o outro de respirar, de falar, de viver. Nem as crises de falta de ar, muitas vezes fatais, observadas na pandemia de covid-19 foram suficientes para abolir a prática desse golpe, inclusive pelas forças repressivas do Estado. O silêncio e a impunidade diante do mata-leão aplicado pelo jogador euro-caucasiano em Vini Jr. sugere o predomínio de uma mentalidade forjada numa longa tradição de patriarcalismo que busca justificar a ira contra as minorias vulneráveis atribuindo a culpa às próprias vítimas da violência.

Bertold Brecht ensina que o opressor acusa de violência o oprimido, quando ele busca pôr fim à subjugação: “Do rio que tudo arrasta se diz que é violento, mas ninguém diz violentas as margens que o comprimem”. O ideal de superioridade aponta o homem branco como símbolo de harmonia e perfeição, como se vê na construção hollywoodiana de D. W. Griffith, O Nascimento de uma Nação (1915), filme que responsabilizava os negros pelo atraso e violência americanos. Tal representação reavivou a Ku Klux Klan e suas terríveis práticas. Mais de 100 anos depois ainda não conseguimos nos livrar desse injustificado ódio. A persistência eurocolonial segue nas relações monoculturais, que são processadas pela história única, que privilegia o universo do estadunidense e do europeu, subjugando as culturas que lhes são estranhas. A distopia eurocolonial tem sido uma tentativa de golpe mortal na emergência da utopia de relações mais plurais, diversas e libertárias.

O preconceito é formado por uma estrutura de cadeias discriminatórias, sendo muito difícil encontrar um indivíduo que seja detentor somente de um tipo de preconceito, pois é uma condição maléfica multidimensional, em que cada parte contém o todo. O preconceituoso destila seu ódio conforme a circunstância, principalmente quando observa alguém que ocupa o lugar da minoria em situação de destaque e reconhecimento. É nessas ocasiões que a intolerância se manifesta, atacando a pessoa ou o grupo minoritário mais fragilizado. O comportamento discriminatório se estabelece em um oportunismo patológico, contrariando arbitrariamente as fragilidades mais inermes, constituindo-as como justificativa para a subalternização das minorias, dos que são considerados diferentes. O anacronismo excludente configura, portanto, a tentativa de subjugação não apenas de uma pessoa ou de um grupo, mas de todas as minorias.

A ojeriza se manifesta por uma estrutura de cadeias preconceituosas, o ódio está em todas as partes da totalidade do preconceito, que, como um vírus, ocupa as lacunas da ausência de conhecimento, formando a patológica síndrome da hipocrisia de um salvacionismo eurocêntrico. O falso moralismo criminoso do racismo é um problema estrutural, está para além de qualquer conceito, aliás inexistente, de “pureza” de raça. E pode ser observado nas múltiplas dimensões da vida social. Se aparece tão descaradamente no futebol, é porque há menos filtros. No entanto, seu caráter simbólico não pode ser ignorado, pois os racistas não estão incomodados apenas com a irreverência da alegre corporalidade africana que se manifesta nas danças comemorativas de Vini Jr., mas com a manutenção hegemônica de um poder que historicamente sempre foi dividido entre brancos. O moralismo euro-caucasiano prefere o golpe racial do mata-leão à força vital da liberdade da dança africana.

Já nós, assim como Nietzsche, preferimos os deuses que sabem dançar. Que sabem dançar e jogar, mas com racismo não há jogo.

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