Alguns fatos e algumas considerações sobre o ensino a distância

Por Otaviano Helene, professor do Instituto de Física da USP

 09/12/2021 - Publicado há 2 anos
Otaviano Augusto Helene – Foto: Reprodução /YouTube

 

 

1) Professores e educadores sempre utilizaram todos os recursos que poderiam beneficiar os processos de ensino, estudo e aprendizado. Os velhos mimeógrafos, muitos reproduzindo textos manuscritos, dada a dificuldade de acesso a máquinas de escrever, substituídos depois pelas fotocópias, os vídeos educativos, as apostilas impressas, muitas vezes por meios gráficos bastante precários, entre tantos outros recursos, sempre foram adotados quando eles eram as melhores opções disponíveis. Portanto, nada também contra o ensino a distância, desde que ele seja o melhor que podemos fazer em certas circunstâncias, como durante a epidemia de covid-19. O ensino a distância também é um recurso que deve ser usado quando ele é alguma coisa a mais, não substituindo o ensino presencial, mas complementando-o, ou quando a outra opção é não fazer nada.

2) Educadores nunca se opuseram a aulas pela televisão quando elas contribuem para o desenvolvimento educacional. Atualmente, as novas tecnologias permitem o acesso a aulas gravadas e aulas on-line, a palestras e exercícios resolvidos disponíveis nas redes de computadores, a inúmeros vídeos informativos e educativos, entre tantos outros recursos. Sempre que estes possam colaborar com o aprendizado, eles devem ser usados, mas, repetindo, não como substitutos do ensino presencial.

3) O ambiente disponível no ensino presencial é especialmente adequado ao processo de ensino e de aprendizado. Uma aula típica ocorre em uma sala adequadamente isolada, sem fatores que possam desviar a atenção das pessoas e na qual há apenas um assunto em pauta. Tal possibilidade é muito rara nos locais de moradia e, ainda assim, apenas nos grupos economicamente mais favorecidos. Entre os problemas mais graves do EaD durante o período da presente epidemia estão os grandes danos causados aos grupos mais desfavorecidos, como já têm mostrado os muitos dados disponíveis.

4) Nas atividades presenciais, além das aulas, há espaços adequados para estudo e trabalho em grupo (muitas vezes, as próprias salas de aula nos horários em que estão vagas), bibliotecas e possibilidade de discussões com colegas e docentes sempre que um assunto exija.

5) O ambiente em uma universidade, como também nas escolas de educação básica, é o melhor a que os jovens adultos, os adolescentes e as crianças podem ter acesso. Esse ambiente oferece inúmeras possibilidades de desenvolvimento pessoal, cultural, artístico e científico que vão muito além das aulas, coisas que não existem no EaD. Há também as atividades típicas da vida estudantil, que incluem aquelas encontradas nas suas entidades organizadas, como centros acadêmicos, grêmios e diretórios, e as atividades culturais e artísticas. Não devemos negar essas possibilidades aos jovens.

Nenhum ambiente que concentre milhares de jovens é tão saudável e motivador como uma boa universidade. Ainda que alguns possam pensar que uma universidade presencial é um “ambiente de balbúrdia”, nenhum outro ambiente oferece oportunidades de desenvolvimento pessoal, intelectual e profissional tão intensas.

6) O ambiente de educação presencial é indispensável para reduzir os efeitos das desigualdades econômicas que tão marcadamente afetam o Brasil e que têm se agravado nos anos mais recentes. Nós já estamos percebendo os efeitos deletérios do ensino remoto durante o período mais grave da epidemia, que, repetindo, afetou de forma gravíssima os estudantes mais desfavorecidos, muitos dos quais simplesmente abandonaram o sistema educacional, não apenas por não disporem de computadores, mas, também, de material didático e de tempo, espaço e ambiente adequados à concentração e ao estudo. O ensino presencial reduz esses efeitos negativos. Ao dificultarmos, com a adoção do ensino a distância, o compartilhamento do mesmo ambiente por todas as pessoas, estaríamos adicionando às desigualdades de renda uma segregação social.

7) Aulas práticas, frequência a laboratórios de pesquisa, acesso a publicações especializadas, acesso individual ou em grupo a professores, possibilidades de interação com estudantes de anos mais avançados são coisas de que não podemos abrir mão sem pagarmos um custo alto no futuro. Não podemos privar os jovens dessas possibilidades, inclusive porque são elas que indicam as inúmeras possibilidades futuras, tanto as profissionais como as de continuação dos estudos e um eventual envolvimento com a pesquisa científica.

8) Nas últimas décadas, formamos uma quantidade de mestres e doutores suficiente para viabilizar um ensino superior presencial de qualidade para todas as pessoas que hoje estão matriculadas nos cursos de graduação. Além disso, essa força de trabalho, se incorporada a instituições de ensino e pesquisa, aumentaria a capacidade nacional de desenvolver as pesquisas básicas de que tanto precisamos e permitiria ampliar a quantidade de estudantes incluídos nas universidades. Neste momento em que a cultura, o conhecimento, a tecnologia e a ciência estão sob ataque, ao renunciar a isso nada ganharemos, nem no presente nem no futuro.

9) No Brasil, o EaD surgiu como uma espécie de substituto ao ensino presencial, não como algo a mais, tendo sido usado como um elemento de exploração financeira e econômica pelo setor privado. Evidência disso é o fato que há hoje uma quantidade de vagas de ingresso em cursos superiores a distância nas instituições privadas quatro vezes maior do que o número de concluintes do ensino médio. Essas “vagas”, de fato, só existem no papel. A elas não correspondem professores contratados, equipamentos disponíveis, material didático etc., sendo uma espécie de reserva estratégica que permite às instituições que as detêm oferecer qualquer curso em qualquer lugar sempre que encontrarem possibilidade de estabelecer uma freguesia para seus produtos. O setor público, ao incorporar e promover o ensino a distância, ajuda a legitimar essa forma tão danosa de educação.

10) Há e houve várias experiências de EaD nas instituições públicas de ensino superior e seus resultados precisam ser analisados pois, por enquanto, não há nenhuma evidência que esse tipo de educação tenha resolvido algum problema nacional, seja ele cultural, educacional, de formação de quadros profissionais, de promoção do desenvolvimento nacional ou do crescimento da produção econômica.

11) A superação das dificuldades encontradas pelos estudantes mais desfavorecidos jamais deveria ser procurada no EaD. Alojamentos nos campi e instrumentos de gratuidade ativa contribuem muito mais para o desenvolvimento da educação, da ciência e da tecnologia e, também, para o desenvolvimento pessoal dos jovens do que o ensino a distância.


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