Em 1946 Castro descreveu um país de famintos e subnutridos, deficitário na produção de alimentos, com uma agricultura pouco desenvolvida em muitos sentidos, ancorada em poucos produtos visando exportação e com pouca adoção de tecnologias produtivas, mesmo daquelas disponíveis à época. O latifúndio improdutivo era característico em todas as regiões e marcante da estrutura agrária. A agricultura absorvia mais da metade da população economicamente ativa. A produção era diversificada, com ampla variedade de produtos agropecuários produzidos em pequena escala e em quantidade insuficiente para atender ao mercado doméstico, com elevada concentração na pauta de exportações da época: açúcar, café, algodão, borracha e cacau. Em 1946, os fundamentos de uma grande mudança, daquilo que no futuro foi chamado de “Revolução Verde”, foram ganhando forma na reorganização geopolítica e econômica mundial do pós-guerra: a fome e a ocupação da maioria dos trabalhadores no campo teriam que desaparecer.
Nas décadas seguintes, o processo de concentração da produção se acentuou ao mesmo tempo em que, nos movimentos pós-1964, o governo desenvolveu uma série de reformas denominadas de modernização conservadora, que, apesar de incluir em alguma medida projetos de colonização de novos territórios por agricultores pobres sem-terra, manteve intacta a estrutura altamente concentrada de domínio da terra e do poder político. Em meados da década de 1960, diversas medidas estrategicamente alinhadas e altos investimentos públicos impulsionaram a implementação das tecnologias associadas à Revolução Verde, visando, principalmente, à geração de excedentes exportáveis. As medidas envolveram a ampla oferta de crédito, a criação de um sistema de subsídios compensatórios e de proteção agrícola (Política de Garantia de Preços Mínimos), a formação e administração de estoques reguladores e a ampliação das indústrias processadoras, como a de soja e de suco de laranja, por exemplo.
No início da década de 1970 os investimentos públicos avançam sobre a área tecnológica, com a criação da Embrapa em 1973 e do Proálcool em 1975, resultando, até o final da década de 1970, em importantes aumentos de produtividade e expansão da fronteira agrícola nas áreas já consolidadas e em novas geografias (Centro-Oeste). As décadas de 1980 e 1990 são marcadas por políticas recessivas e processo inflacionário que restringiram o desenvolvimento em geral, e da agricultura em específico. Nessa época, as políticas mais marcantes foram os estímulos às exportações agrícolas. Políticas diferenciadas e incentivos foram estabelecidos para os produtos destinados ao mercado externo como café, açúcar, soja, suco de laranja, cacau, algodão e tabaco.
A partir do início dos anos de 1990 houve a progressiva eliminação de restrições às importações de produtos agrícolas, reduções e simplificações tarifárias. Como resposta, a produção doméstica se tornou mais competitiva no cenário global e a aquisição de insumos e máquinas agrícolas a preços do mercado internacional trouxe novo impulso tecnológico para a produção. A criação da Organização Mundial do Comércio (1993), o acentuado processo de globalização, a redução do papel controlador do Estado e a menor disponibilidade de recursos públicos beneficiaram os produtores maiores e aqueles com maior familiaridade com as novas tecnologias da Revolução Verde, ao mesmo tempo que os grandes grupos multinacionais expandiam suas operações no Brasil. Os anos 2000 se iniciam com o boom das commodities, influenciado pela rápida expansão da economia chinesa. Ao longo dos anos 2000, o Brasil consolida sua posição como protagonista global do agronegócio e se torna peça-chave no atendimento da demanda crescente de alimentos, bioenergia, celulose e outros produtos agropecuários.
O sucesso global do setor agropecuário brasileiro é multifatorial. Por um lado, na raiz do sucesso, estão sem dúvida os ganhos crescentes de eficiência encampados por uma mentalidade empreendedora de um conjunto de produtores rurais que souberam, a partir de um conteúdo tecno-científico adaptado às condições tropicais, transformar terra, trabalho e capital em commodities de demanda altamente crescente. Por outro lado, diferentes formas de pensamento questionam se benefícios legais, tributários e mercadológicos estariam efetivamente integrados ao sucesso no ambiente rural de forma socialmente aceitável. Assim, teriam as empresas rurais se beneficiado de baixas tributações, subsídios governamentais e ausência de fiscalização territorial? Ou seria o sucesso atribuído ao fato de uma maior eficiência no uso da terra, a partir de uma maior produtividade por área, usufruindo de aspectos legais e tributários já existentes?
A trajetória que liga 1946 a 2022 fincou uma cunha no agora chamado “agronegócio brasileiro”. Por um lado, as atividades agrícolas e aqueles que as executam, que eficientemente incorporaram as tecnologias associadas aos princípios da Revolução Verde e ganharam escala de forma consistente e crescente, concentraram a produção. Mas, independentemente do perfil do produtor – agricultor familiar, médio ou grande -, do produto – agrícola, alimento, ração, fibra, celulose, exportação ou mercado interno -, ou da região em que se concentram os cultivos, quem incorporou tecnologias de forma mais eficiente, concentrou a produção e os meios de sua obtenção – terras, crédito e outros recursos produtivos. Os fatores que levam à maior ou menor incorporação deste tipo específico de tecnologia são múltiplos e complexos. Envolvem as ênfases temáticas e o perfil dos processos de P&D&i, que são compartilhados por interesses, instituições e recursos tanto públicos como privados; as infraestruturas locais e regionais disponibilizadas como apoio à produção; as políticas públicas e privadas de crédito em termos de focalização de produtor, geografia de atuação e setores atendidos; as ênfases e os agentes públicos e privados que fornecem assistência técnica e extensão rural; o recorte temático dos currículos de formação acadêmica e técnica dos profissionais agrários, apenas para iniciar uma lista que é bem maior do que os exemplos aqui colocados.
Do outro lado desta cunha estão aqueles que ao longo desta trajetória não incorporaram este tipo específico de tecnologia. Nestes, observamos o processo de fragmentação da propriedade, geralmente em eventos sucessionais, e sua gradativa desativação produtiva, que não é exclusivo, mas afeta principalmente os pequenos produtores. Os efeitos sociais e ambientais deste processo certamente serão muito maiores do que seu efeito sobre a safra e protagonismo mundial do Brasil como expoente do agro mundial. Quando alguém deixa de produzir, outro produtor, outro produto, outra região, outra tecnologia produtiva assumem seu lugar.
A trajetória que liga 1946 a 2022 consolidou a produção nas áreas já ocupadas aumentando de forma importante sua produtividade, mas também, de forma contínua e persistente, expandiu a produção sobre novas fronteiras. Primeiro sobre os Cerrados da região Centro-Oeste, depois as chapadas do Cerrado nordestino (Matopiba) e atualmente sobre o sul amazônico (Amacro). A expansão ocorreu, e continua ocorrendo, em parte, pela apropriação de terras públicas (grilagem), desmatamento ilegal com a exploração dos recursos florestais seguida do estabelecimento inicial de pecuária de corte extensiva. A valorização das terras, mesmo daquelas griladas ou desmatadas ilegalmente, a ineficácia da presença do Estado nas regiões de fronteira e pós-fronteira em assegurar o cumprimento legal e a defesa dos interesses coletivos e a crescente presença de organizações criminosas organizadas nas fronteiras tornam este quadro cada vez mais dramático.
O Brasil chega a 2022 com um imenso setor agropecuário, múltiplo, complexo e diversificado. Estratégico para a segurança alimentar do planeta num país em que a fome voltou a assombrar entre 9% e 15% dos seus 212 milhões de habitantes, dependendo de quem e como esta terrível realidade é avaliada. Um setor que respondeu de forma eficiente, tanto no âmbito público como no privado, às inovações tecnológicas ofertadas pela Revolução Verde, concentrando a maior parte da produção e atividades em quem se especializou. A forma operante dessas propriedades vem sendo usada como modelo para muitas regiões que aspiram o progresso de sua produção agrícola e a fonte de preocupação dos países que concorrem com o Brasil no agro mundial. No resíduo deste processo vemos a desativação ou estagnação produtiva da maioria que, por uma razão ou outra, não incorporou este tipo específico de tecnologia, perpetuando, assim, as desigualdades e a concentração de pobreza no campo.
A constante e predominante análise deste enorme e complexo setor através de filtros ideológicos, simplificações, visões parciais ou unilaterais não é um terreno fértil para seu desenvolvimento sustentável em sentido amplo. A sustentabilidade decorre de um processo em que as escolhas consideraram as melhores possibilidades de contribuir para uma sociedade plural e fundamentada em princípios igualitários, a promoção de benefícios para a natureza, e o respeito ao próximo. A ciência tem um papel fundamental em descrever e entender os efeitos do setor agropecuário brasileiro, e ajudar a orientar as escolhas daqueles que podem e estão guiando seu caminho. Um esforço feito, necessariamente, num ambiente colaborativo e de cocriação entre ciência, gestores públicos e privados, representantes dos grupos de interesse envolvidos e afetados pelas decisões.
O eixo de Agricultura e Pecuária do Programa de Eixos temáticos da USP faz parte das iniciativas de organização do conhecimento científico com este objetivo, semeado em terreno fértil, por estar inserido num grupo maior de outros dez eixos temáticos, ampliando o escopo da análise para uma visão transdisciplinar e transetorial necessária para o pleno entendimento da abrangência e complexidade envolvidas.
* Também assinam este artigo: Augusto Hauber Gameiro, professor da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia (FMVZ) da USP, Rafael Araújo Nacimento, pós-doutorando do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP, e Vanessa Theodoro Rezende, doutoranda da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia (FMVZ) da USP