A escrita acadêmica e uma certa maneira de dizer “eu”

Por Gabriel Carra, mestrando da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP

 29/05/2024 - Publicado há 2 meses     Atualizado: 13/06/2024 as 16:36
Gabriel Carra – Foto: Arquivo pessoal

 

 

Há algum tempo, o professor Jean Pierre Chauvin escreveu um artigo em que identifica um fenômeno não desprezível da escrita acadêmica das últimas décadas: o crescente uso da primeira pessoa do singular em teses e dissertações. Esse acréscimo de marcas referenciais de si mesmo no discurso acadêmico pode ser considerado, de fato, uma mudança de paradigma em processo, uma vez que historicamente o discurso científico se articula por meio de um sistemático apagamento de seu enunciador.

Algumas possibilidades a respeito da questão são aventadas: um personalismo nos discursos de modo geral, o advento de uma cultura do self media, promovida pelas novas tecnologias, sintomas ou não de hiperindividualismo ou contingências sociais, psicológicas ou emocionais. Essa supremacia do Eu de que fala Chauvin é bem apontada e merece as devidas críticas, uma vez que é um Eu ensimesmado e alérgico à permeabilidade de outras vozes (podemos dizer até grosseiramente resistente a elas). Em suma, um Eu que resolve o problema, que deveria permanecer sempre em aberto – o da disputa que vive no interior das linguagens, parafraseando Bakhtin –, por meio de uma surdez seletiva.

Na fala desse Eu, nada de sedução, nada de um espaço no qual seu leitor ou ouvinte possa se alojar e viver. Contudo, esse Eu, colhido da tradição romântica e radicalizado até o paroxismo, não é o único que nos foi legado: há também um Eu impessoal, despersonalizado, um Eu que reconhece a subjetividade como intersubjetiva e que torna a primeira pessoa do singular não um reforço do sujeito hiperindividualista, mas um espaço enunciativo no qual cada sujeito pode se abrigar em sua leitura, uma vez que os shifters da linguagem, sendo de natureza dêitica, não têm significado definitivo: em cada leitura que se faz de Se um viajante em uma noite de inverno, o tu do texto indicará um referente diferente da realidade, o leitor que está lendo o romance.

Do mesmo modo acontece com o Eu. Há, portanto, o Eu de que trata Chauvin, mas há esse outro Eu, que por um enorme esforço enunciativo deixa de ser apenas uma marca personalista e passa a ser um lugar vazio, e, portanto, generoso: é o Eu de Gide em muitos trechos de sua autobiografia, Se o grão não morre, é o Eu de Rimbaud, de Murilo Mendes e de tantos outros que conhecemos da literatura.

Certo, reconhecemos a multiplicidade do Eu, mas não era de literatura que ele tratava, seu horizonte era o discurso acadêmico. Se voltarmo-nos aos fundadores de discursividades (por exemplo, Freud, Marx) ou aos professores e críticos a quem devemos nossa formação (e aqui deixo a cargo do leitor imaginar os seus), logo percebemos que tanto seus trabalhos quanto aqueles de um Eu intersubjetivo da literatura compartilham algumas características: são posições generosas, são fruto de um reconhecimento ao mesmo tempo de suas contingências e da necessidade de superá-las, e são conquistas de linguagem.

São um trabalho incansável, amoroso mesmo, para convencer o leitor de que aquela posição particular, de que aquela construção específica do Eu (seja o Eu explícito da literatura; seja o Eu implícito do discurso acadêmico) é válida para o leitor. É assim que me sinto lendo os melhores trabalhos acadêmicos ou teóricos, por exemplo, os de Foucault ou Darwin, em suas respectivas áreas.

Tal como o Eu já tem em sua história todo o seu futuro e tudo o que posso amar e detestar, assim também acontece com a enunciação em terceira pessoa. Há essa bela enunciação, muito próxima ao juízo estético kantiano, mas há também aquela legatária do positivismo, que se ampara no apagamento do Eu do discurso como tática (aqui não digo trabalho, uma vez que é receita, tal como o uso do Nós para não parecer pretensioso) para reforçá-lo: universaliza-se a posição do sujeito apagando as marcas de contingência de seu discurso, assim eximindo-se do embate com a linguagem. É possível propor um discurso acadêmico tão alérgico à permeabilidade das vozes alheias quanto o do Eu hiperindividualista sem sequer usar uma única vez a primeira pessoa do singular.

Arrancar o discurso ao solipsismo, à tentação do ensimesmamento, não é, parece-me, uma simples opção entre apresentar ou apagar as marcas enunciativas do Eu: antes, é um combate com a linguagem, uma luta para conquistar uma enunciação feliz, ou, nas palavras de Chauvin, para alcançar um trabalho conduzido de qualidade. Não há propriamente redundância na opção pelas marcas enunciativas do Eu, pois os caminhos trilhados em cada opção serão diferentes, apresentarão seus próprios desafios.

Caminhos distintos, mas, seja qual for a opção do aluno de graduação ou de pós-graduação, logo ele perceberá que uma coisa os aproxima: muito trabalho.

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