A comunidade que aprecia esta observação pode, claro, tentar criticar a sua validade, mas: como negar que a distância entre os que têm e os que não têm está aumentando no mundo todo, e que esta pandemia escancara essa distância? Como esconder o fato de que, cada vez mais, os 1% de mais posses são donos de porcentagens maiores dos produtos nacionais brutos? Como esconder os milhares de mortos pela pandemia de covid-19? Como negar, depois de três ou quatro pandemias nas últimas décadas, que devemos nos preparar para a próxima? Por fim, é só sentir o calor dos últimos dias, os extremos climáticos que se repetem, a destruição das florestas e do cerrado, a acidificação dos oceanos, entre muitos outros indicadores, para afirmar que o prenunciado ponto de não retorno do equilíbrio deste mundo como conhecemos está próximo.
A quantidade de espécies animais, vegetais ou microbianas deste planeta que desapareceram, inúmeras sem deixar rastros, é tão enorme que nem sabemos quantificá-las. Assim, a desaparição de mais uma, a humana, poderia nem deixar marcas indeléveis. Mas, à diferença dos dinossauros, ou os mastodontes, a espécie humana tem plena consciência de que a sua desaparição como espécie não é inevitável. A princípio, nada impede que, com a ciência e a tecnologia existentes e as que estão por vir, o homo sapiens possa reverter, em grande medida, as categorias trágicas que hoje nos ameaçam.
A barreira que nos impede de enfrentar iniquidade social, mudança climática e pandemia não passa nem pela ciência nem pela tecnologia, e se resume a uma única palavra: política.
Estratégias racionais de curto, médio e longo prazo, com marcos temporais de aferição bem definidos, metas acordadas e mensuráveis podem ser formuladas para impedir que a temperatura do planeta exceda 2oC nos próximos trinta anos. Na verdade, algumas destas já foram formuladas desde a Conferência do Clima no Brasil em 1992.
Diminuição das abissais diferenças socioeconômicas que nos separam dependem de medidas que visam a igualar as oportunidades e passam, sobretudo por três pilares: educação, educação e educação. Claro que ninguém aprende de estômago vazio, claro que neste século não se aprende nem se obtém trabalho sem acesso à internet, mas esse patamar mínimo permite educação, e somente assim será possível evitar o fosso alastrante prenunciado pela era da informática. Também é inaceitável uma concentração de renda gigantesca que permite, até em países desenvolvidos, a existência de segmentos da população desassistidos e mal nutridos.
Consciência da ausência de fronteiras para vírus ou bactérias pandêmicas, bem como a necessidade de comunidades locais de ciência bem estruturadas, capazes de dar orientações a políticas racionais de saúde, ciência de fronteira vigilante, entre outros componentes estratégicos, podem preparar o mundo para futuras pandemias.
As condições para impedir a desaparição da espécie, portanto, estão dadas. Estamos munidos de conhecimento e de tecnologia, capacidade de enfrentar enormes desafios com mais ciência, tecnologia e humanidade. Porém, quando um candidato a presidente da maior potência planetária se recusa a declarar sua repulsa aos movimentos de supremacia branca, declara para um grupo nazista que deve, simplesmente, ter paciência, anuncia em alto e bom som que aceita os resultados da eleição somente se ele for eleito, e ainda não se manifesta se vai aceitar qualquer resultado eleitoral sem induzir à violência seus seguidores, é difícil ver saídas consequentes para evitar as tragédias da tempestade perfeita.
Por aqui, o atual presidente, além de sua lamentável atitude perante a pandemia de covid-19, se dá ao luxo de destacar o negacionismo das queimadas da Amazônia e do Pantanal, que se fazem presentes em seu discurso como propaganda da suposta política ambiental na mais importante instituição multilateral, a ONU, num discurso lamentável, repleto de inverdades. Já no Estado de São Paulo, onde pesquisa e ensino superior vêm contribuindo para o desenvolvimento intelectual, social e econômico, o governador pretende acabar com a autonomia das universidades e da Fundação de Amparo à Pesquisa, que permite que este Estado seja o mais desenvolvido do País.
Em um Estado democrático, o enfrentamento a tempestades perfeitas como a descrita deveria conduzir a um debate social amplo onde as melhores armas seriam usadas para mitigar cada um dos componentes que nos ameaçam, visando ao enfrentamento e à diminuição do sofrimento de todos. Não é isso que estamos vendo, nem nos Estados Unidos nem no Brasil.
Está na hora de reagir, focando no perigo comum, a extinção da espécie, com a clareza de que somente com um regime democrático, onde negacionismo e populismo não tenham espaço, poderemos ultrapassar estes momentos.