A desbolsonarização e as políticas de segurança pública

Por Maria Paula Dallari Bucci, professora da Faculdade de Direito (FD) da USP

 12/01/2023 - Publicado há 2 anos     Atualizado: 13/01/2023 às 16:39

O ataque aos três Poderes em Brasília no dia 8 de janeiro coloca em pauta a institucionalidade da segurança pública. A punição dos responsáveis – os depredadores e financiadores do vandalismo, assim como os agentes da lei dolosamente omissos na sua prevenção e repressão – é fundamental. Não haverá paz enquanto permanecerem impunes as afrontas aos fundamentos da ordem democrática.

Mas a resposta do governo deve ir além disso. A crise é uma oportunidade de transformação sistêmica da segurança pública. A responsabilização de indivíduos não basta para resolver o problema do aparelhamento partidário das polícias que foi fomentado nos últimos anos. Desfazer essa partidarização será um trabalho longo, que só será possível com a renovação democrática das estruturas repressivas do País, orientada por uma concepção cidadã de segurança pública.

Mas esse é um tema cronicamente negligenciado pelo campo progressista. Apesar de avanços na construção de uma perspectiva de políticas públicas para o campo nos últimos anos, amparada em produção técnica que dá nova racionalidade à área, como o Anuário Brasileiro da Segurança Pública e o Atlas da Violência, coordenados pelo Fórum Brasileiro da Segurança Pública, entre outros, e a realização da 1ª Conferência de Segurança Pública em 2009 (gestão Lula-Tarso Genro), ela continua exposta à exploração emocional e ao cultivo do medo, que alimentam a insegurança como instrumento de poder. A segurança está longe de ser vista como serviço público e como direito fundamental; segue como privilégio acessível diferenciadamente segundo o estrato social de cada um.

É preciso retomar iniciativas do primeiro governo Lula, quando o ministro da Justiça Marcio Thomaz Bastos patrocinou o fortalecimento da estrutura da Polícia Federal, com novas contratações, valorização da carreira, investimentos, planejamento e gestão. Também é dessa época o apoio governamental às listas tríplices para escolha do chefe do Ministério Público Federal (MPF), em contraposição ao método que levou à escolha do “engavetador geral da República”, o Procurador-Geral da República (PGR) Geraldo Brindeiro, na gestão de Fernando Henrique Cardoso. Essas medidas conferiram um sentido de profissionalização a carreiras que, embora fossem típicas de Estado, nunca tinham gozado da independência necessária para atuar de forma técnica, com autoridade para se contrapor ao aparelhamento partidário que marcava sua história.

É bem verdade que a operação Lava Jato, com seus excessos e ilegalidades, rachou a independência que se construía, quando esta passou a ser usada como uma nova forma de desvio dos poderes funcionais, liberta da submissão aos mandantes partidários tradicionais, mas instrumentalizada a serviço de concepções voluntaristas de justiça. Uma força-tarefa mal regulamentada no MPF, acumulando poderes e recursos, combinada com a concentração indevida de processos na 13ª Vara Federal de Curitiba, sob a jurisdição de Sérgio Moro, posteriormente declarado suspeito pelo Supremo Tribunal Federal (STF), produziu um grande retrocesso na construção institucional de um sistema penal republicano.

Quanto à nomeação do PGR, por ironia da história, o presidente mais antidemocrático que já tivemos não viu dificuldade em escolhê-lo segundo critérios de submissão pessoal, o que lhe assegurou a impunidade, mesmo diante de denúncias graves e robustamente fundamentadas, como as apresentadas pela Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Covid-19.

A profissionalização da segurança pública foi um processo que ocorreu também nos Estados, embora de maneira desigual. Houve crises policiais sérias no Espírito Santo e Goiás em 2017, no Distrito Federal em 2018 e no Ceará em 2020. Nesse contexto, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu pela inconstitucionalidade da greve de policiais. Acórdão relatado pelo Ministro Alexandre de Moraes em 2017, então recém-chegado à corte, em nome da maioria, definiu: “A carreira policial é o braço armado do Estado, responsável pela garantia da segurança interna, ordem pública e paz social. E o Estado não faz greve. O Estado em greve é anárquico. A Constituição Federal não permite.” (ARE 654.432). Ficaram vencidos os Ministros Fachin e Marco Aurélio, que admitiam a greve, observados determinados procedimentos.

A despeito das crises, no conjunto parece ter se firmado uma certa institucionalidade nas carreiras policiais dos Estados. Essa foi uma das explicações para não ter havido adesão de policiais militares ao movimento golpista convocado por Bolsonaro, no 7 de setembro de 2021, que alguns temiam. Entendeu-se, à época, que apesar das simpatias de muitos policiais pelo bolsonarismo, eles teriam muito a perder com a aventura golpista, uma vez que as corporações estão em geral mais estruturadas e há meios de punição efetivos.

Uma concepção democrática de segurança pública nasce a partir de uma ideia diretriz, mas só se firma se for testada e validada em situações difíceis. Políticas de segurança pública dignas de um país que se quer desenvolvido e antirracista, no século 21, dependem de que se enraíze, como âncora de legitimação, a convicção de que regras de igualdade perante a lei, impessoalidade, devido processo legal e presunção de inocência valem – de verdade e para todos.

O incipiente Sistema Único de Segurança Pública, instituído pela Lei n. 13.675/2018, pode ser o ponto de partida dessa proposição. A experiência do Brasil com os sistemas estruturantes de políticas públicas, o Sistema Único de Saúde (SUS) e o Sistema Único de Assistência Social (Suas), nos casos da saúde e da assistência social, e o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb) – que supre, em certa medida, a falta do sistema de educação previsto na Constituição e ainda não regulamentado – indica que eles podem funcionar como plataformas político-institucionais, molduras de ação coordenada para a pactuação evolutiva de protocolos de conduta, organização e financiamento entre os entes da federação. Mas se não houver compreensão do desafio político subjacente às tarefas a serem realizadas pelos instrumentos do direito e da gestão, a transformação não ocorrerá, como alertava Luiz Eduardo Soares:

Na área de segurança pública, o novo governo pode optar pela mera retomada do velho normal, voltando ao antigo vocabulário das modernizações, dos aperfeiçoamentos, da reatividade, das propostas no varejo – avessas à perspectiva sistêmica–, sem qualquer compromisso com mudanças substantivas, sem nenhuma noção quanto à urgência e à gravidade do que representa o bolsonarismo no universo policial – que, note-se, é anterior a Bolsonaro. Mas se a opção for assim restauradora, duvido que esse velho normal nos leve a outro destino senão ao caos bolsonarista. Que desperdício histórico seria. Que tragédia. A postura politicamente defensiva seria nossa cota de negacionismo e corresponderia, caso se impusesse, à triste notícia de um looping anunciado. (O problema mais urgente do Brasil é a ruptura entre autoridade e poder, 26/11/2022)

O problema é que a agenda da segurança pública parece secundária neste governo, como transparece no laconismo do relatório da transição. Na disputa entre projetos que propunham a separação dos Ministérios da Justiça e Segurança Pública – conforme desenho adotado no governo Temer e indicado por Lula na campanha– e sua manutenção unificada, a segunda opção prevaleceu. Há motivos razoáveis para isso, como a dificuldade de coordenação que adviria da multiplicidade de corporações policiais alojadas em um ministério próprio, conforme analisa Fábio de Sá e Silva. Mas o fato é que o governo não parece preparado para a transformação.

(As opiniões expressas pelos articulistas do Jornal da USP são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem opiniões do veículo nem posições institucionais da Universidade de São Paulo)


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