“A construção sensata, segura e compreensiva da mudança dos tempos” que caracteriza a mineiridade

Por Luiz Roberto Serrano, jornalista e coordenador editorial da Superintendência de Comunicação Social (SCS) da USP

 Publicado: 12/04/2024

Mitologia da Mineiridade – O Imaginário Mineiro na Vida Política e Cultural do Brasil, de Maria Arminda do Nascimento Arruda, vice-reitora da USP, a ser lançado neste sábado, 13 de abril, é um mergulho profundo e complexo sobre a “mineiridade”, consagrada na cultura tupiniquim como a expressão do comportamento dos habitantes do Estado de Minas Gerais no seu relacionamento dentro e fora de sua região, especialmente na política, em particular para fora de suas fronteiras. Trata-se de uma segunda edição, tendo sido a primeira em 1989, depois de ser defendida como tese de doutoramento na USP.

“De fato, Mitologia foi criado em um contexto particular do Brasil. Momento da redemocratização, após o regime autoritário e repressor que se iniciara em 1964, era uma conjuntura repleta de esperanças de promessas de reconciliação do país, de construção civilizatória”, diz Maria Arminda no prefácio desta segunda edição. “No conjunto, anunciava-se como uma nova cultura política. Embora distante da matriz original, surgia, sobretudo, no bojo da recuperação da mitologia concebida em Minas Gerais, cujo ideário manifestava-se como construção sensata, segura e compreensiva da mudança dos tempos, representada na figura de Tancredo Neves, presidente eleito no Colégio Eleitoral”, acrescenta. Participei desse momento da história, como assessor de imprensa do então presidente do PMDB, Ulysses Guimarães, que capitaneara a Campanha das Diretas por todo o País, nos estertores do regime militar, tese derrotada no Congresso Nacional. Insucesso inicial que resultou, em seguida, na eleição do então governador de Minas Gerais, Tancredo Neves, via Colégio Eleitoral, no qual votavam apenas os congressistas, caminho que se mostrou viável depois da derrota das Diretas Já, em que todos os brasileiros habilitados votariam.

Acompanhei de perto o pas de deux encenado por Ulysses Guimarães e Tancredo Neves na Campanha das Diretas, fase final da ditadura brasileira, então presidida pelo general João Figueiredo. Ulysses promoveu comícios a favor das Diretas Já em todo o País, do Oiapoque ao Chuí, como se dizia então, mobilizando multidões nas capitais dos estados brasileiros. Tancredo Neves compareceu em todos, prestigiou pessoalmente a campanha de Ulysses, apesar de ser de conhecimento geral que ele não acreditava no sucesso da empreitada do presidente do PMDB. Lembro-me de Tancredo Neves discursando a favor da Campanha das Diretas sobre um bloco de cimento num cruzamento da Avenida da Praia, em Porto Alegre, em passeata promovida na capital gaúcha. Ninguém poderia acusá-lo de boicotar publicamente a Campanha das Diretas e, com essa posição, se cacifou para ser o candidato a presidente pelo pleito indireto.

A eleição foi ápice de uma longa carreira carregada de “mineiridade” que o levou do Ministério da Justiça de Getúlio Vargas, nos anos 1950, ao cargo de primeiro-ministro do gabinete parlamentarista inicial de João Goulart, no começo dos anos 1960, e ao comando de Minas Gerais, em 1982, na primeira eleição direta de governadores permitida pelo governo militar. Esse histórico, ora como adepto do getulismo, ora como adversário dos governos militares, o levou a ser eleito presidente da República pelo Colégio Eleitoral, como alternativa oposicionista mas conservadora, quando o regime fardado, que tinha como candidato o controverso ex-governador de São Paulo, Paulo Maluf, acabou. Infelizmente, Tancredo, já diplomado como presidente, faleceu antes de tomar posse, em março de 1985, vitimado por uma diverticulite, que evitara operar antes de ocupar o Palácio da Alvorada, com receio de que a doença se tornasse um empecilho para ocupar a cadeira de chefe da nação.

O modernizante JK

“O estado de Minas Gerais teria preservado os atributos fundamentais do antigo Brasil”, diz Maria Arminda na sua obra. “Nem Juscelino, o político mineiro de expressão mais moderna, fugiu a esse tipo de sedução”. Segundo ela, “o mineiro soube conservar, apesar das muitas transformações da (então) hora presente, as qualidades mestras do velho Brasil, um vivo sentimento dos valores eternos, sem os quais tudo o mais não tem significado ou sentido”. Ex-deputado federal por Minas Gerais, eleito sucessor de Getúlio Vargas, em 1955, um ano depois do suicídio do presidente gaúcho e várias contestações à sua escolha pelo eleitorado, JK, como era chamado, liderou um banho de modernidade no País. Governou com o slogan 50 anos em 5, impulsionando e comandando a construção de Brasília, que interiorizou o desenvolvimento do País, abriu a estrada Belém-Brasília, facilitando a sua integração, estimulou a instalação da indústria automobilística e outras áreas fabris. No seu governo, deu-se o florescimento da cultura e das artes brasileiras, nas suas diversas expressões. Foi um presidente “bossa nova”, na música do trovador Juca Chaves, que não deixou escapar à sua verve crítica a compra pelo Brasil do porta-aviões, chamado de Minas Gerais, que fora desativado pela Marinha inglesa.

Naquele tempo, não havia reeleição, e JK já se posicionava para se candidatar em 1965, na sucessão do paulista Jânio Quadros. Este renunciou sete meses depois de tomar posse, acusando indiretamente o Congresso Nacional – “forças ocultas” foi o termo que usou – de obstaculizar seu governo. Seu sucessor, João Goulart, herdeiro do getulismo, acabou afastado pelo golpe militar de 1º de abril de 1964. JK acabou cassado na maré revanchista que se formou contra os políticos na época, depois de submetido a inúmeros inquéritos comandados por coronéis das Forças Armadas.

Se houve um político mineiro que procurou sintonizar o Brasil ao século 20, foi Juscelino Kubitscheck, que mostrou que a “mineiridade “ não era necessariamente um atributo paralisante, que só permitia mudanças que não alterassem significativamente o status quo, mas uma qualidade que possibilitava avanços quando a conjuntura era favorável. Talvez, por isso, Maria Arminda o classifique como “o político mineiro de expressão mais moderna”, como já citado acima.

Antes de JK, Minas Gerais tivera representantes na Presidência durante a Primeira República: Afonso Pena, Delfim Moreira, Arthur Bernardes, que se revezavam com os representantes paulistas na política do “café com leite”, sendo que a rubiácea, especialmente a paulista, era o maior produto de exportação do Brasil na época. O mineiro Pedro Aleixo era vice do general Costa e Silva, no fim dos anos 1960, mas quando este teve um enfarte, os militares não permitiram sua assunção ao cargo. Já em tempos mais recentes, na década de 1990, o mineiro Itamar Franco, eleito vice-presidente do cometa alagoano Fernando Collor, o substituiu quando este foi cassado. Como presidente, abriu espaço para seu ministro da Fazenda, Fernando Henrique Cardoso, futuro presidente da República, criar, com sua equipe, o real, a moeda brasileira que quebrou o ciclo inflacionário que contaminava o País e mantém-se com insistente estabilidade até os dias de hoje.

O livro de Maria Arminda não se resume à “mineiridade” na política, como este meu modesto artigo. Vai muito além: aborda, ao longo de suas 300 páginas, suas várias expressões “políticas, literárias, memorialísticas, ensaísticas, além, naturalmente, da cultura popular”, com referências constantes à presença de Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, que se transformou, em sua visão, “no marco da história moderna brasileira, um criador da verdadeira nacionalidade”.

O livro é resultado de sua sofisticada formação em sociologia e, claro, suas profundas raízes mineiras. Andréa Borges Leão, da Universidade Federal do Ceará, e Maria Eduarda da Mota Rocha, da Universidade Federal de Pernambuco, destacam sua origem mineira em Bionotas, no site da Sociedade Brasileira de Sociologia: “Foi na fazenda de Tombos, cidade do interior de Minas Gerais, região de fronteira com o Rio de Janeiro, que nasceu Maria Arminda do Nascimento Arruda, em uma família abastada, cultivada e católica, em 1948. Uma família ligada ao negócio do café. A origem paterna era portuguesa açoriana. A da mãe, uma parte vinha de avós portugueses de Guimarães, outra parte de alemães, afeitos igualmente ao cultivo das letras e dos idiomas estrangeiros. O pai, José do Nascimento, agrônomo de formação e escritor, fez das frequentes viagens com a esposa para a cidade do Rio de Janeiro um elo familiar entre o universo agrário e a cultura urbana carioca. Após a primeira escolarização dos filhos e na contingência das reviravoltas nos negócios e perdas financeiras, a família muda-se para o Rio de Janeiro, a fim de recomeçar embora, anos após, tenha se deslocado para São Paulo […] Maria Arminda chega a São Paulo aos 15 anos, ainda cursando o colegial […] No final dos anos 1960, ingressa no curso de Ciências Sociais da Universidade de São Paulo”.

Eram tempos agitados.

Veja matéria sobre o livro:

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