O STF e a normalização política

Por José Eduardo Campos Faria, professor da Faculdade de Direito da USP

 13/02/2023 - Publicado há 1 ano

À medida que as investigações sobre a intentona de 8 de janeiro vão se aprofundando, vai ficando claro o esquema elaborado pelo ex-presidente Jair Bolsonaro e seu entorno familiar, militar e partidário para romper a ordem constitucional e permanecer no poder.

A ideia era forjar alguma coisa com relação ao ministro Alexandre de Moraes, presidente do Tribunal Superior Eleitoral, levando-o a falar numa conversa particular algo que expressasse sua falta de imparcialidade, e usar a gravação feita com recursos fornecidos pelo Gabinete de Segurança Institucional como pretexto para decretar Estado de Defesa. A minuta do decreto estava pronta, e uma cópia foi achada pela Polícia Federal na residência do ex-ministro da Justiça de Bolsonaro.

Colegas de minha geração logo compararam a estratégia bolsonarista com Bananas, uma comédia de Woody Allen lançada há mais de meio século sobre um golpe de Estado numa republiqueta da América Central. Golpes podem render boas paródias no mundo da sétima arte, mas têm efeitos disruptivos na vida real. O autoritarismo furtivo contemporâneo envolve a corrosão da democracia por meio do uso e distorção, por governantes autocratas, das próprias regras do regime democrático. Como mostram os analistas desse fenômeno, os tribunais superiores (como o eleitoral e, principalmente, o Supremo, encarregado da última palavra no controle da constitucionalidade das leis) se tornaram o principal alvo dessa estratégia.

Sejam Adam Przeworski, Steven Levitsky ou Daniel Ziblatt, sejam Yascha Mounk ou Anne Applebaum, os principais analistas do autoritarismo furtivo ou da democracia iliberal lembram que seus dirigentes começam erodindo o Estado de Direito por meio da perversão do processo legislativo. Baixam decretos do Executivo – que não precisam passar pelo Congresso – para disciplinar o que só pode ser tratado por meio de lei ordinária. Aprovam leis ordinárias para matérias que só podem ser objeto de leis complementares. Utilizam a legislação infraconstitucional atropelando a legislação constitucional. Abusam de medidas provisórias e mesmo de propostas de emenda constitucional, colocando numa mesma PEC um sem-número de matérias que nada têm a ver entre si. E, por fim, aplicam leis de modo seletivo, relegando aquelas cujo teor e princípio orientador desprezam.

Se a corte encarregada da última palavra no controle da constitucionalidade das leis se omitir diante de tantos abusos, governantes autocratas avançam ainda mais na confrontação com a ordem constitucional, testando assim os limites institucionais do regime democrático. E se a corte cumprir o papel para o qual foi criada, esses governos passam a reclamar que ela não os deixa governar e mobilizam suas forças para afrontar o Judiciário. Não foi por acaso que, das sedes dos três Poderes que foram objeto da intentona de 8 de janeiro, a do Supremo Tribunal Federal foi a mais destruída.

Até esse dia, a estratégia do atual ex-presidente da República e de sua trupe já estava clara, uma vez que muitos setores conservadores endossaram a acusação de que o STF vinha exorbitando, invadindo a jurisdição do Legislativo e do Executivo. Contudo, esse pessoal não foi capaz de diferenciar o joio do trigo. Nos últimos anos, à medida que cada um dos 11 ministros abusou das decisões monocráticas, o Supremo deixou de ser um órgão colegiado. Além disso, os ministros passaram a abusar dos pedidos de vista e a não cumprir os prazos regimentais para devolvê-los ao plenário. Também passaram a compor as duas turmas conforme seus respectivos interesses e conveniências. O resultado da substituição da decisão coletiva pelo individualismo foi a disseminação de insegurança jurídica e o comprometimento da imagem institucional da corte.

Esses problemas, contudo, não têm a ver com o modo como o STF reagiu à escalada golpista do presidente Bolsonaro. Ao enfrentá-la, a corte acertou na estratégia. Em primeiro lugar, os ministros deixaram de lado suas divergências e visões de mundo e passaram a agir de modo unido, o que lhes deu força. Em segundo lugar, a presidência do STF autorizou a abertura de inquérito judicial sem pedido prévio da Procuradoria-Geral da República. A iniciativa foi fundamentada em termos muito vagos, sob a justificativa de “combater” as fake news e agressões institucionais, morais e até físicas contra ministros da corte. Em terceiro lugar, também surpreendeu ao escolher o ministro encarregado de conduzir esse inquérito não por sorteio, mas a dedo – com isso a indicação recaiu sobre um antigo promotor de Justiça e ex-secretário de Segurança Pública, ou seja, um operador jurídico preparado para lidar com as oito novas figurais penais que a Lei 14.197/21 incluiu no Código Penal – todas em defesa do Estado de Direito e de suas instituições. Um dos novos crimes é o que tipifica a tentativa de golpe de Estado. Em quarto lugar, esse ministro, Alexandre de Moraes, passou a determinar um sem-número de medidas cautelares emergenciais para apurar fatos noticiados pela imprensa, o que levou a prisões de antigos ministros, de parlamentares, de empresários e de manifestantes que tentaram destruir as sedes dos três Poderes. Embora fosse criticado por uma concentração excessiva de poderes e por tomar iniciativas como a de afastar um governador por decisão de ofício e retirar quaisquer usuários das redes sociais, cada decisão de Moraes foi referendada por seus pares logo após ser tomada.

Mesmo que venha apresentando resultados positivos e seja endossada por todos os ministros do STF, essa estratégia de enfrentamento do extremismo golpista foi adotada em caráter excepcional, uma vez que ameaças antidemocráticas exigem medidas enérgicas. Por isso, a mesma estratégia tem de ser engavetada à medida que os problemas políticos e jurídicos gerados pelo 8 de janeiro forem sendo superados e o País voltar à estabilidade política. Afinal, se esse método de contenção das ameaças à democracia for mantido após a normalização da ordem institucional, ele pode – justamente por sua excepcionalidade – gerar problemas para a própria democracia, o que é não só um paradoxo, mas, também, um perigo.

Feito o julgamento dos envolvidos na intentona de 8 de janeiro e restabelecida a autoridade jurisdicional, o STF precisa se concentrar prioritariamente em agir como órgão colegiado, preservando a isenção, resistindo a pressões, não fazendo concessões e sabendo escolher os meios constitucionais adequados para a manutenção da democracia. Caso normalize as medidas excepcionais, a corte arriscará provocar o efeito adverso – de colaborar com o aprofundamento do bolsonarismo, do autoritarismo furtivo e da democracia iliberal no Brasil.

Enfrentar escaladas golpistas exige firmeza, como a que foi demonstrada pela ministra Rosa Weber ao discursar na sessão de abertura do ano judiciário de 2023, é certo. Mas sempre dentro das fronteiras da ordem constitucional. Nada justifica responder a ameaças autoritárias agindo além dos limites da institucionalidade em vigor.

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