Crise do preconceito afirmativo: a supremacia dos pardos

Por José de Souza Martins, Professor Emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP

 26/03/2024 - Publicado há 7 meses

A publicação dos primeiros resultados do Censo Demográfico de 2022 faz alguns desmentidos interessantes sobre a cara do Brasil. Este não é um país nem de brancos nem de negros, mas um país de pardos. Além do que, os pardos não são os mulatos, mas sim os indígenas e seus mestiços de branco.

As revelações pouco revelam, a não ser que nossa concepção de raça e cor tem sido puramente ideológica e flutuante. Muda de acordo com o vento da história. E este é um momento em que nosso senso comum pobre está reinventando a concepção não científica de “raça” e a concepção popular e relutante de cor da pele.

Desde abril de 1500, horas depois da descoberta do que viria a ser o Brasil, sabe-se disso pela carta do escrivão da frota, Pero Vaz de Caminha, que a mandou ao rei para dar-lhe “a nova do achamento desta vossa terra nova”. Desde o momento em que os reinóis chegaram já instituíram o senhorio de Dom Manoel I sobre a terra dos nativos que foram vistos na praia. Ser descoberto significou, também, ter dono. A nova terra e a nova gente tinham dono.

Logo que Nicolau Coelho, o primeiro português que chegou à praia, e foi cercado pelos nativos que por ali perambulavam, Caminha conta ao rei: “Eram pardos, todos nus, sem coisa alguma que lhes cobrisse suas vergonhas.” A carta é uma preciosidade antropológica sobre um novo capítulo na história da diversidade dos seres humanos.

Essas são as referências sociais e políticas da definição do perfil de quem era e de quem viesse a ser habitante da nova terra, que deixava de ser velha como o mundo para ser nova no que era de fato a reinvenção do mundo. Um mundo de gente a ser vestida, carente do revestimento cultural que a integrasse na concepção de humano dos conquistadores. Para eles, pelados não eram gente, eram gentios. Para os descobridores, a humanidade do homem estava na roupa e nos revestimentos, na concepção de fé, poder e vergonha.

O Censo de 2022 revelou que 45,3% dos brasileiros são pardos, 43,5% são brancos, 10,2% são pretos, 0,8% são indígenas (ou seja, pardos verdadeiros, o que eleva os pardos censitários para 46,1%) e 0,4% são amarelos. Muitos dos novos pardos desse Censo recente de identidades raciais autodeclaradas é de brancos convertidos em pardos. Ou de pretos mestiços que acham melhor o meio-termo de pardos, negação de branco como negação de preto. O que diminui significativamente o risco de estigmatização por motivo da cor da pele.

O Censo mostra que a tentativa política de juntar numa categoria de cor, a de pretos e pardos, como se fossem variações da negritude, não foi legitimada pela maioria estatística deste censo, em que o recenseado teve a opção de se dar a conhecer não pelo que parece mas pelo que acha que é. Uma significativa revisão do critério para definir o que é a maioria do povo brasileiro.

O que expressa uma revisão do nosso senso comum frágil que pode ser superado pelas ciências sociais. A sociologia e a antropologia poderão ter, no cenário das reivindicações sociais que se supõe raciais, um papel que aumente a qualidade das demandas de vítimas de injustiças históricas na formação da sociedade brasileira. A Universidade poderá ter uma função significativa no incremento da qualidade e na eficácia do clamor por reparos sociais necessários e urgentes.

A verdadeira categoria de brasileiros na atualidade não foi recenseada: a dos mestiços de todas as mestiçagens, que são, muito provavelmente, a maioria dos habitantes do País. A mais cosmopolita cidade brasileira, São Paulo, tem até mesmo mestiços de brancos com brancos de várias e diversas brancuras.

Do mesmo modo que os pretos, até pelo menos o final do século 19, identificavam-se por sua cultura e etnia de origem. Na Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, que reunia escravos, cuja igreja ainda existe no centro da cidade, praticamente frequentada por brancos, o domínio era dos bantus, falantes do iorubá (língua de que há um curso na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP), que se consideravam superiores aos pretos das demais origens africanas.

A categoria social “negro” foi de fato inventada pelos senhores de escravos, em boa parte mamelucos, mestiços de branco e índia. Para eles, negro era a cor da escravidão e o escravo era mera coisa que falava, mero semovente, mero animal de trabalho.

Embora os senhores de escravos tivessem inventado, também, gradações na condição de escravo por meio dos agrados compensatórios, e atenuações do castigo, que traziam o preto para o âmbito de privilégios fragmentários de branco. Não era incomum que o tratamento de um escravo doente ou de uma escrava parida fosse feito com comida e bebida de branco, como carne de vaca e aguardente do reino, esta comprada em farmácia. O escravo se tornava semibranco por alguns dias, colocado entre os parênteses da brancura. Curado, voltava a ser preto.

Tem muita mediação nessa história de raça e cor, que os que dão palpites, e tomam decisões sobre o assunto, não conhecem nem querem conhecer. Falta sociologia e antropologia no trato da questão e nas reivindicações não propriamente de direitos mas não raro de privilégios, uma concepção de branco.
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