Universidade, razão e ecossistemas

Por Janice Theodoro da Silva, professora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP

 07/02/2023 - Publicado há 1 ano

Quais são os novos desafios enfrentados pela universidade, pela ciência e pela razão na atualidade?

São sintomas dos novos desafios a prática da irracionalidade, a manipulação da mentira e o genocídio das populações originárias, armas da extrema direita.

As mortes por covid, em Manaus, são indício da crise da razão. Na sequência assistimos à vitória da cloroquina, de Bolsonaro. O ex-presidente do Brasil teve o apoio de 61,28% (692.580) da população de Manaus e, Lula, defensor da vacina e da ciência, ficou com 38,72% (437.691).

Manaus é a prova da crise da razão.

De acordo com matéria publicada no jornal Amazônia Real, escrita por Eduardo Nunomura, a partir de dados obtidos por meio da Lei de Acesso à Informação, entregues com um ano de atraso, 595 pacientes morreram na fila da UTI. Mais da metade era procedente de cidades do interior. As fotos das covas sendo abertas não deixam dúvidas do problema enfrentado: a falta de oxigênio.

A ciência perdeu em Manaus. Perdeu na porta dos hospitais e perdeu novamente com a morte de centenas (mais de 500) crianças yanomamis vítimas da malária, das disenterias, das pneumonias e da fome.

O que explica o apego à cegueira diante de tantas mortes, de tanta barbárie?

Muitos estudos tentam desvendar o desapego crescente à razão acompanhado de afinidade com a ilusão, com mitos e com as mentiras, fake news.

Do ponto de vista da ciência, da produção de conhecimento, observa-se, atualmente, reposicionamentos conceituais capazes de auxiliar as discussões. Alguns falam em novos paradigmas e outros em pluralidade das epistemologias. Muitos concordam: é necessário repensar a razão, as universidades e a vida no planeta (ecossistemas).

A dualidade natureza e cultura foi rebatida pelas novas “epistemologias ecológicas”, por uma nova ética. Assim como a ciência, no seu nascedouro, foi questionada, negada e perseguida, na atualidade o obscurantismo, o negacionismo e a mentira ganharam espaço no seu combate à ciência.

Perseguir a ciência e desqualificar as universidades é um dos pilares do pensamento da nova direita.

Por quê?

O relatório Confiança na ciência no Brasil em tempos de pandemia sugere reflexões.

Os dados

Fonte: Confiança na Ciência no Brasil em tempos de pandemia / INCT-CPCT

É compreensível, observando os dados, constatar o grau de confiança na ciência. 33% e 35,9% dos entrevistados, somando o total de 68,9, confiam muito ou confiam na ciência. Também é possível explicar o fato de 23,5% e 5,8% confiarem pouco ou não confiarem na ciência.

Segundo o IBGE, em 2019, no Brasil, 6,6% da população era analfabeta e 46,6% tinha cursado apenas o ensino fundamental. O analfabetismo e a baixa escolaridade justificam a falta de instrumentos para compreender o funcionamento dos métodos científicos.

Também é razoável compreender as interferências da religião, motivada pela fé, como argumento da pouca aceitação de raciocínios com base em métodos científicos. A morte no Brasil foi, durante séculos, tratada como vontade divina, apaziguando a dor da perda.

Fazendo um apanhado geral é razoável vincular nível educacional, religiosidade e renda a aceitação, maior ou menor, das premissas defendidas pela ciência. A linguagem científica, o uso de raciocínio lógico e as comprovações de hipóteses fazem parte da prática educativa bastante precária no Brasil, justificando os dados apresentados no gráfico.

Os ambientalistas e as mudanças

Os dados e as análises apresentados na sequência representam uma ruptura com a lógica até aqui apresentada. Os níveis de confiança (baixos) nos ambientalistas sugerem mudanças na percepção e estimulam a discussão sobre a confiança na ciência. Observem os gráficos abaixo:

Fonte: Confiança na Ciência no Brasil em tempos de pandemia / INCT-CPCT
Fonte: Confiança na Ciência no Brasil em tempos de pandemia / INCT-CPCT

Examinando os dados da pesquisa, prevalece a lógica (antiga): os médicos são os mais confiáveis. 60,1% e 38% dos entrevistados, tanto no levantamento de 2019 como no de 2022, afirmam confiar nos médicos. Percepção justificável porque eles são os primeiros a acudir os doentes em momentos de necessidade. Também é compreensível imaginar o fato das divergências sobre a vacinação e as práticas sanitárias (uso de máscaras), empregadas durante a epidemia de covid, terem influído na diminuição da confiança na ciência. A comparação dos gráficos de 2019 e de 2022 comprova a premissa.

Em matéria de fontes confiáveis, depois dos médicos seguem os cientistas de universidades ou institutos públicos de pesquisa e cientistas que trabalham em empresas. As diferenças de formação entre os médicos e os cientistas é significativa. Tratar um resfriado, realizar uma operação ou produzir uma vacina contra a gripe, varíola ou covid exige habilidades distintas entre si. A valorização dos médicos em detrimento dos cientistas tem origem na falta de conhecimento (educação) sobre os objetos de pesquisa de cada especialista. Compreensível num país onde a educação de qualidade é privilégio de poucos.

Até agora nenhuma novidade. Existe remédio para esclarecer os estudantes brasileiros sobre as especificidades dos objetos de pesquisa nas escolas e nas universidades. Mas existem nos gráficos indicadores preocupantes. Eles sugerem a crise da razão.

Fontes mais confiáveis antes da pandemia (2019) Fontes mais confiáveis durante a epidemia (2022)
Médicos 60,1% 38%
Cientistas de universidades ou institutos públicos e cientistas que trabalham em empresas 47,3% 22,2%
Jornalistas 36,4% 20,9%
Religiosos 14,5% 4,5%
Representantes do meio ambiente 5,8% 1,1%
Militares 5,1% 1,2%
Escritores 3,2% 0,3%
Políticos 1,5% 1,0%
Artistas 1,5% 0,3%

 

A covid, como mostram os dados acima, diminuiu a confiança na ciência, provavelmente em razão da falta de atendimento médico-hospitalar. Muita gente procurou o hospital, mas sem a disponibilidade das UTIs, morreu.

A tragédia favoreceu o descrédito no Estado, nas instituições, na ciência, nos jornalistas, nos religiosos, nos militares, nos políticos, nos escritores e nos artistas. A desconfiança cresceu de forma geral.

O papel dos médicos e cientistas produzindo vacinas e lutando para salvar vidas não deveria ter incentivado a confiança na ciência? Por que aconteceu o inverso?

Desmobilização do conhecimento: os representantes do meio ambiente

Observem nos dados da pesquisa citada os indicadores de confiança/desconfiança com os representantes de organizações de defesa do meio ambiente. O índice de confiança dos representantes de organizações de defesa do meio ambiente é muito baixo em 2019, em comparação com médicos, cientistas e jornalistas. Piorou em 2022 (de 5,8% para 1,1%).

Como explicar?

As mortes em Manaus, cidade inserida no meio da floresta amazônica, não favoreceram a confiança na ciência e aumentaram a desconfiança nos representantes de organizações do meio ambiente.

As pesquisas na área ambiental envolvem técnicos especializados, biólogos, engenheiros e alta tecnologia. Muitas universidades brasileiras e estrangeiras reúnem especialistas renomados, com publicações em periódicos internacionais respeitáveis, gerando informações com base científica, como o Inpe – Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais.

Por que, então, tanta desconfiança com esses profissionais? De 5,8%, em 2019, para 1,1% em 2022.

Na sequência outra informação do relatório, fora da “lógica tradicional”, complementa os dados: o “negacionismo climático”. Ele é defendido igualmente por pessoas de baixa escolaridade e brasileiros ricos, com níveis de escolaridade altos, defensores do crescimento econômico e com apego a valores tradicionais. O artigo citado explica.

“A chance de negar a ocorrência de mudanças climáticas aumenta também entre pessoas com baixo grau de familiaridade com noções de ciência e entre os brasileiros mais ricos, que, em geral, possuem maior escolaridade e acesso à informação. Isso se deve ao fato de que, para além do conhecimento, aceitar as evidências científicas sobre o clima está associado a valores. A chance de ‘negacionismo climático’ aumenta, por exemplo, entre aqueles que declaram que o crescimento econômico deve ser priorizado em relação à saúde, assim como entre as pessoas que tendem a discordar de afirmações de paridade de gênero.”

Perigo à vista: setores das elites econômicas e políticas optaram, em nome de seus interesses, por negar, desqualificar ou relativizar a importância da ciência e das universidades. É sugestivo relacionar esta ocorrência com o decréscimo do número de inscrições para o vestibular em importantes universidades brasileiras, USP, Unicamp e Unesp, demonstrando menor interesse pelas carreiras universitárias.

Por quê? Alguma correlação entre meio ambiente e descrédito na ciência e diminuição de interesse pelas carreiras universitárias?

“Negacionismo climático”, um sintoma de um planeta politicamente doente. O “negacionismo climático” é um sintoma de uma nova maneira de ler o mundo, de enfraquecer confiança na ciência e de relativizar a importância da formação universitária.

Antigamente o conhecimento era compartimentado (ciências exatas, biológicas e humanas) e respeitado. A aura do conhecimento, da razão, foi apropriada na atualidade pela tecnologia. A universidade era um dos poucos canais de ascensão social, instituição bastante respeitada.

O que mudou?

O lugar da mudança

Tradicionalmente o homem era considerado o único animal racional capaz de produzir e utilizar o conhecimento para se apropriar da natureza e criar riquezas. A natureza era compreendida como escrava do homem, disponível para o seu uso e abuso.

A partir dessa proposição os estudantes aprendiam como deveriam construir uma ponte em uma encosta perigosa, como produzir máquinas e como combater os vírus responsáveis por tantas doenças. O progresso e a riqueza seriam resultado do conhecimento humano (razão) e da apropriação da natureza, dos recursos naturais, supostamente infinitos. Antigamente a construção de uma ponte dependia apenas de raciocínios típicos da engenharia, cálculos complexos, análise de resistência de materiais, mas não envolvia, obrigatoriamente, um diálogo com a mata, nem muito menos com as pessoas e instituições defensoras da floresta, do cerrado ou da caatinga. O projeto, a ponte, a rodovia ou a hidroelétrica respondia aos resultados finais para a população que utilizaria a ponte ou a energia. Uma reflexão sobre o contexto poderia existir, mas era lateral.

Agora as coisas mudaram de lugar. A mata (ou o clima), por exemplo, ganhou “lugar de fala” em nível nacional e internacional. Com frequência o meio ambiente reposicionou os interesses de pessoas, de corporações ou de instituições públicas. Os avanços do conhecimento demonstraram serem porosos os limites entre o homem e a natureza e serem finitos os recursos naturais disponíveis no planeta.

A ciência, na atualidade, colocou um problema que mexe no bolso das pessoas, no caixa (econômico) das empresas e, no caso do ouro, nas Distribuidoras de Títulos e Valores Mobiliários (DTVM), autorizadas a comprar o ouro extraído no Brasil, sem necessidade de comprovar a origem.

Estas mudanças geraram um reposicionamento da condição humana, em relação ao meio ambiente e à ética, anteriormente discutida de forma segmentada nos diferentes campos disciplinares. A ética tornou-se ambiental, planetária, surgindo o campo dos direitos vinculados à preservação do meio ambiente. Cresceram as rivalidades entre interesses econômicos, recursos ambientais e, o mais complicado de tudo, cresceu a hostilidade com a ciência capaz de provar o perigo de um desastre ambiental. A ciência ao avisar – catástrofe à vista – se tornou o primeiro inimigo a ser destruído. Os garimpeiros, madeireiros (entre outros) e seus financiadores concluíram: esta é a última chance de ficar rico. Morte a tudo e a todos que estiverem na frente. Morte e silenciamento para os mensageiros da denúncia. Morte para as universidades, para a ciência, para os jornalistas, para juízes, promotores e seus tribunais. Morte para quem estiver na frente.

O planeta, as nações a as fronteiras passaram a ser vistos de forma diferente. Diferente daquela maneira de ver o mundo no pós-guerra. A devastação, hoje, pode prejudicar o país vizinho, sem agressão de fronteiras ou guerra. Basta não chover ou chover demais, o prejuízo é certo.

Pensar o homem como parte do meio ambiente representou uma revolução epistemológica de grandes consequências. A natureza se transformou em ofertório da vida para uns e escrava para ser violentada para outros.

Um outro tipo de guerra de libertação teve início. Uma cruzada onde os primeiros mortos foram as crianças, filhos dos guardiões da floresta, seguida dos rios, dos aquíferos, das matas, dos bichos, das diferentes formas de vida.

Os avanços da ciência mudaram as coisas de lugar. Apareceram os defensores do meio ambiente dispostos a libertar da escravidão a natureza e torná-la parte de um todo composto igualmente por gente, bicho e vegetação. A guerra estava instalada com novos atores.

Como em qualquer revolução, ocorreram eventos extremos. Os rios se rebelaram, a chuva fez greve, as encostas mostraram a sua potência. As universidades tentaram reagir com cursos de Eventos Naturais Extremos. Os cientistas denunciaram as relações entre desmatamento e a proliferação de doenças. A covid explodiu como um soco no estômago de um mundo globalizado.

A tragédia e a pandemia resultaram em maior confiança na ciência?

Não.

A inclusão do homem como parte integrante da natureza, de importância relativa, representou uma revolução na antiga concepção de ciência e de conhecimento interferindo no papel da universidade. O homem deixou o lugar de “O” grande agente transformador. Surgiram novos atores sociais: as florestas, os animais, o clima, com poder equivalente ou superior.

A água, a neve, o frio e o calor extremo demonstraram seu poder e ganharam adeptos entre os humanos. O mundo verde começou a montar uma tropa de combate. Teve início uma revolução epistemológica global acompanhada de uma série de outras revoluções, tecnológicas, éticas e políticas. A extrema direita deu seu grito de guerra: “eu vivo disso”. Azar de quem estiver na frente.

A natureza ganhou “lugar de fala”. A extrema direita, também.

A universidade, espaço de produção do saber, acompanhou e acompanha as mudanças. Desenvolveu pesquisas, utilizando a tecnologia para avaliar diferentes hipóteses sobre o clima e a importância para a sobrevivência das espécies e a preservação do meio ambiente. O desafio é imenso.

As conclusões caminharam em direção à valorização dos recursos naturais, obrigando as universidades a reposicionarem os campos de investigação, valorizando os saberes transversais. Desafio imenso jamais enfrentado antes.

A ONU e o planeta

O fim da Segunda Guerra mundial gestou um organismo internacional para gerenciar as ruínas da guerra, a ONU. Na atualidade surgem novos desafios globais. Envolvem novas concepções de uso território e novos atores, com “lugar de fala”, consoante com as coordenadas geográficas, com o clima, hidrografia e vegetação.

Qual a relação desta reflexão com as tabelas acima, sobre maior ou menor confiança na ciência?

Os defensores do meio ambiente, defensores de ciência, de todos os saberes terão de enfrentar inimigos poderosos e com força crescente. A extrema direita não é apenas conservadora nos costumes e competente em matemática financeira. Ela é conservadora e autoritária na sua episteme. Ela não admite a circulação das populações pobres e a entrada em cena da natureza como ator com direitos em âmbito nacional e global.

Observem os dados da tabela. Representantes do meio ambiente despertam pouca confiança dos entrevistados (5,8% em 2019 para 1,1% em 2022).

Ao transformar o meio ambiente em um conjunto de atores a floresta ganha voz, o rio seca, o peixe foge. A riqueza, anteriormente apropriada pelos humanos, passa a fazer parte de uma ética ecológica com poder de criminalizar a exploração em âmbito global.

Combates contra o conhecimento, contra a comprovação de fatos, contra a busca da verdade serão os desafios da vida acadêmica nos próximos anos. Não vai ser fácil nem para as universidades nem para os seus pesquisadores, nem para os alunos envolvidos com as diversas áreas do saber.

As forças armadas concebidas em torno da ideia de Nação e com o papel de preservação do território nacional terão dificuldades em compreender e atuar diante de um novo paradigma. Exterminar a floresta, o suposto inimigo vegetal, talvez não seja um bom caminho. Morreremos todos e dum lado e de outro da fronteira.

A epistemologia moderna tem inimigos em quantidade. Os primeiros são as populações originárias aliadas da floresta, depois os ambientalistas, seguidos das universidades, responsáveis por mapeamento dos prejuízos climáticos. Os jornalistas estão em risco no Brasil, embora ocupem o terceiro lugar nos índices de confiança. Eles têm cumprido o seu papel. As fotos dos yanomamis expressam indignação daqueles que presenciaram a cena de devastação humana e ambiental. As feridas da nossa terra e da nossa gente estão expostas no Brasil e no mundo.

À Universidade cabe um desafio enorme. Deverá reformular seus currículos nas diferentes áreas de saber, incluindo, nos seus cursos, o novo paradigma ecológico, uma ciência humanizada da qual faz parte, de forma integrada, humanos e não humanos.

Ailton Krenak, em seu livro A vida não é útil, escreve:

“Se a principal marca dos humanos é se distinguir do resto da vida terrestre, isto nos aproxima mais da ficção científica que defende que os humanos que estão habitando a Terra não são daqui”.

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