A Amazônia e o mito do tapete verde

Por Herton Escobar, jornalista especializado em Ciência e Meio Ambiente e repórter especial do “Jornal da USP”

 14/12/2022 - Publicado há 1 ano

Meu primeiro encontro com a Amazônia foi em janeiro de 2005. Eu tinha 27 anos e já escrevia sobre ela há algum tempo, mas foi só ali contemplando a floresta do ar pela primeira vez que eu realmente compreendi a dimensão da sua existência. A Amazônia tem uma grandiosidade que não cabe em palavras; você tem que ver para crer. E o melhor ponto de vista é justamente da janela de um helicóptero: alto o suficiente para enxergar a floresta a se perder de vista no horizonte, mas, ao mesmo tempo, baixo o suficiente para ver as cores, texturas e detalhes mais finos de sua copa.

Um dos equívocos mais comuns (que eu mesmo já cometi) é pensar na Amazônia como um grande “tapete verde” homogêneo — como se tudo que existisse ali naqueles milhões de quilômetros quadrados de floresta fosse a mesma coisa. Não é. Claro que tudo bem dizer isso de uma forma mais simbólica; mas a realidade, na prática, é muito mais complexa do que isso. Por baixo desse “tapete verde” aparentemente — e apenas aparentemente — homogêneo esconde-se uma gigantesca diversidade de paisagens, ecossistemas, bichos, plantas, moléculas, povos e tradições, esculpidas por uma combinação igualmente gigantesca de processos biológicos, geofísicos e climáticos que variam imensamente ao longo do tempo e do espaço.

A Amazônia, na verdade, é um grande conjunto de florestas intrinsicamente conectadas entre si. A Amazônia do Mato Grosso é diferente da Amazônia do Pará, ou de Roraima, que por sua vez são diferentes da Amazônia do Acre, da Bolívia ou do Peru, e assim por diante. Claro que há muitas semelhanças entre elas, mas também há muitas diferenças. As paisagens e as condições climáticas locais são bastantes variadas. Há espécies que ocorrem ao longo de toda a Bacia Amazônica, mas também existem as espécies endêmicas — bichos e plantas que só ocorrem em alguma localidade específica, às margens de um único rio ou no topo de uma única montanha, por exemplo.

Muito cuidado, portanto, para não cair na armadilha — armada por aqueles que querem lucrar com a destruição da floresta — de que tudo bem desmatar um pouco mais aqui embaixo, porque ainda tem muita floresta “sobrando” lá pra cima. A floresta que existe mais para lá não é a mesma que existe aqui; os bichos e as plantas que vivem lá não são os mesmos que vivem aqui; e acima de tudo isso há a questão climática: a Amazônia é fundamental para a estabilidade climática do planeta, e vários estudos indicam que a perda de 40% da sua cobertura florestal (ou até menos do que isso) já pode ser suficiente para quebrar o regime de chuvas e desencadear um processo de “savanização” de todo o bioma, com consequências drásticas para o clima local, regional e global. Já desmatamos mais de 20%! Melhor parar por aí.

Aquela primeira viagem de 2005 foi como repórter do jornal O Estado de S. Paulo, para acompanhar uma expedição científica ao interior do Parque Nacional Montanhas do Tumucumaque, no Amapá, o maior parque de florestas tropicais do mundo, com uma paisagem marcada pela presença de muitos inselbergs — grandes afloramentos rochosos que parecem brotar da selva, como o Pão de Açúcar, no Rio de Janeiro. Era uma área completamente desconhecida da ciência até então, e o objetivo da expedição — organizada pela ONG Conservação Internacional, em parceria com o Ibama e o governo do Amapá (Iepa e Sema) — era justamente fazer um primeiro inventário de biodiversidade da região. Passei uma semana acampado com os pesquisadores numa área remota do parque, percorrendo trilhas de noite e de dia, em todas as direções, para coletar a maior variedade possível de plantas e animais. Foi ali que eu entendi, realmente, o que é “biodiversidade” e como ela se distribui pela imensidão da floresta. Nesse sentido, foi uma viagem que moldou minha visão da Amazônia e influenciou todos os textos que escrevi sobre ela desde então.

Quase 20 anos depois, em novembro deste ano, tive a chance de reviver essa experiência num outro ponto super remoto e desconhecido da Amazônia: a Serra do Imeri, no norte do Amazonas, acompanhando uma expedição organizada pelo professor Miguel Trefaut Rodrigues, do Instituto de Biociências da USP, com apoio do Exército Brasileiro e financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), por meio do programa Biota. Foram quase duas semanas acampado a mais de 1.800 metros de altitude, com uma equipe de 14 pesquisadores vinculados à USP, UFSCar e Jardim Botânico do Rio de Janeiro, e mais de 20 militares. Lugar incrível, difícil de chegar, difícil de sair, e cheio de espécies novas, que vão ajudar a ciência a escrever a história da biodiversidade da Amazônia.

As expectativas para essa expedição vocês podem ler nessa reportagem, publicada em 21 de outubro, antes de embarcarmos para Manaus. O resultado dela vocês poderão ler na última edição do ano do Jornal da USP, em 22 de dezembro. Até lá.


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