Ainda que a reflexão neste artigo seja feita a partir de algo bastante pessoal, acredito que também tenha sido vivenciado por outras e outros colegas de universidades que atuam em diferentes áreas, campi e em momentos diversos da história. Penso que ter passado por essa experiência tenha me permitido compreender coisas que ouvi de colegas ao longo dos anos sem poder dimensioná-las de modo adequado.
A experiência: decidi prestar concurso para titular na USP. Embora tenha sido aprovada (aliás, todos os inscritos que compareceram ao certame foram aprovados), não fui indicada. Não quero falar sobre o processo em si, mas do momento pós-concurso. O que pode ocorrer com docentes que não são indicadas ou indicados para o cargo de professor titular ao qual concorreram?
No primeiro dia de trabalho após o concurso, quando me dirigi a meu campus para lecionar, senti um peso enorme. Estava no carro com o coração disparado, quase com falta de ar. Um aperto no coração somado a uma tristeza e a um sentimento de perda. Fiquei pensando se encontraria energia para seguir em frente com a mesma dedicação de antes. Se conseguiria dar a aula que deveria dar. Se poderia sair do carro sem me debulhar em lágrimas pela perda de algo tão caro e tão valioso. Não se tratava de uma aprovação em um concurso. Era algo muito mais complexo.
Diferente dos concursos para o ingresso na carreira docente, quando a não aprovação indica um atraso no início de uma jornada, um concurso para titular marca, de modo intenso, a trajetória de um profissional que, na maioria das vezes, dedicou uma vida inteira a uma mesma instituição. Isso realmente pode trazer consequências psíquicas danosas para quem se submeteu ao concurso e não foi indicada ou indicado. A instituição pode, em razão disso, perder o empenho e a dedicação de seus profissionais mais experientes que desanimam diante da negativa da excelência de sua trajetória. Como são muitos docentes e poucas vagas, imagine a quantidade de pessoas que simplesmente, após concursos para titulares, não conseguem mais encontrar motivação para seguir se dedicando, de modo intenso, a uma instituição que lhe negou o reconhecimento.
Se formos visitar os ensinamentos da psicologia e da psicanálise, as palavras “luto” e “trauma” poderiam surgir como modos de explicação do que talvez ocorra com muitas e muitos docentes no momento pós-concurso para titular.
Sobre o luto, é dito:
A ideia de luto não se limita apenas à morte, mas o enfrentamento das sucessivas perdas reais e simbólicas durante o desenvolvimento humano. Deste modo, pode ser vivenciado por meio de perdas que perpassam pela dimensão física e psíquica, como os elos significativos com aspectos pessoais, profissionais, sociais e familiares do indivíduo (…)
O luto é um processo lento e doloroso, que tem como características uma tristeza profunda, afastamento de toda e qualquer atividade que não esteja ligada a pensamentos sobre o objeto perdido, a perda de interesse no mundo externo e a incapacidade de substituição com a adoção de um novo objeto de amor (FREUD, 1915).
O luto é necessário para a elaboração da perda. A vivência do luto permite que, gradativamente, haja o direcionamento (investimento) da atenção, dos afetos, a outros objetos de amor, ressignificando a vida. Mas a situação no ambiente acadêmico traz complicações.
Uma delas é que, nas instituições acadêmicas, no dia seguinte à não aprovação ou à não indicação para o cargo de titular, todas as pessoas que sentem e vivenciam a não aprovação como a perda de algo que lhes era tão caro (o reconhecimento) têm que voltar ao trabalho como se nada tivesse ocorrido. Ou seja, a instituição não permite que docentes vivenciem a dor da perda pelo não reconhecimento. Não permite que os docentes vivam o luto. E as consequências para o não vivenciar o processo de luto, segundo a psicanálise (e a medicina), podem ser desestruturantes do ponto de vista da saúde mental. Além disso, qual seria o novo objeto de amor no mundo acadêmico após a não indicação? Pelo que docentes em luto deveriam substituir o objeto de amor perdido se ele se associa ao reconhecimento de suas trajetórias acadêmicas de uma vida inteira de trabalho?
Felizmente, para mim, ao entrar na sala de aula e começar a conversa com jovens estudantes que retornaram de um longo período de paralisação na USP, senti um ânimo novo. Quase sempre, para não dizer sempre, são os estudantes que nos dão a energia necessária para o trabalho docente. Então, descobrir o amor ao próprio ofício docente (e não a esperança de merecidos reconhecimentos pelos pares) ajuda (embora não resolva) uma parte do processo de luto e de ressignificação da vida acadêmica.
Mas nem todas as pessoas encontram essa porta de saída. Não raro se escuta que o concurso para titular foi o pior momento da vida de docentes que nunca se recuperaram. Torna-se um trauma.
O trauma é o resultado de um evento intenso, negativo, para o qual as pessoas não conseguem encontrar ou dar respostas adequadas. Se me recordo bem de minhas aulas de epistemologia da psicologia e da psicanálise em meus tempos de Unicamp, o trauma pode ser associado a angústias e a ressentimentos. Todos são efeitos paralisantes. Então, ao expor os docentes a situações traumáticas para reconhecimento na carreira, as universidades correm o risco de perdê-los ou perdê-las para sempre em processos de luto intensos e permanentes ou gerando traumas para os quais não se encontra saídas.
Por isso, não posso deixar de perguntar: por que uma instituição escolheria submeter seus docentes mais experientes a uma situação que pode ser definida como traumática se há outras opções mais respeitosas que poderiam ser exploradas? Por que temos que manter um ritual antiquado, oneroso e ineficiente? Cinco docentes ao longo de dias de trabalho ouvem e avaliam uma aula de alguém que já dedicou anos da vida fazendo exatamente isso (lecionando). Fazem perguntas sobre a trajetória de trabalho expressa em um memorial, trajetória essa que já foi testada ao longo dos anos nos quais tudo que consta no texto foi produzido. O que prova uma aula dada em 60 minutos por alguém que dá aula ao longo de décadas? O que mostra um questionamento de 20 minutos sobre uma produção que levou anos e anos para ser construída? Qual o sentido desse rito de passagem que nada demonstra de eficácia, eficiência ou efetividade?
A titulação poderia, perfeitamente, estar associada à dedicação por anos de trabalho qualificado à universidade. O trabalho e a dedicação poderiam ser verificados por meio de dossiês que seriam analisados por um comitê de colegas docentes de outras universidades (da mesma área de conhecimento). A avaliação indicaria se o que consta no dossiê procede (não envolve fraudes, plágios, irregularidades) e se atende aos requisitos sugeridos pela instituição que abriu a vaga no concurso para titular. E só. Assim, cada docente poderia ponderar quando estaria apto ou apta a produzir o dossiê e pleitear o cargo que equivale ao reconhecimento de seus anos de trabalho, dedicação e merecimento. Sendo cargo público, esta oportunidade estaria aberta a pessoas/docentes provenientes de quaisquer instituições acadêmicas.
Não haveria humilhação, estariam qualificadas as pessoas com mais tempo de trabalho e dedicação comprovadas por meio do atendimento a requisitos pré-definidos. E a classificação levaria em conta os critérios que hoje são considerados como ações afirmativas para cargos públicos (equidade de raça e de gênero; etnia; pessoas com deficiência).
Por que temos que percorrer o caminho da dor, da exposição, do risco de criar situações vivenciadas como traumáticas e que resultam na perda da motivação de docentes experientes quando há alternativas? Quem sabe Freud explique!
_______________
(As opiniões expressas pelos articulistas do Jornal da USP são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem opiniões do veículo nem posições institucionais da Universidade de São Paulo. Acesse aqui nossos parâmetros editoriais para artigos de opinião.)