O “mentirário”

Por Gaudêncio Torquato, escritor, jornalista, professor titular da Escola de Comunicações e Artes da USP e consultor político

 08/05/2023 - Publicado há 12 meses

O que é um homem verídico? É um homem sem meandros, since­ro ao mesmo tempo em sua vida e em suas palavras e que reconhece a existência de suas qualidades próprias, sem nada acrescentar a elas e sem nada delas subtrair, respondeu Aristóteles em seu tratado de ética.

Jair Bolsonaro é um homem verídico? Luiz Inácio pode ser considerado um homem que fala a verdade? Enfim, Arthur Lira, presidente da Câmara, Rodrigo Pacheco, presidente do Senado, deputados e senadores são pessoas que acrescentam ou não firulas às suas palavras, não aumentando ou diminuindo o tamanho de seus relatos?

A resposta afirmativa merece uma gargalhada. Em se tratando de políticos, aplica-se a modelagem do cardeal Mazzarino, que ganhou o título do papa, em 1632, para realizar missões diplomáticas. Um defensor do cinismo e do embuste. Vejam seus princípios: simula; dissimula; não confies em ninguém; fala bem de todo mundo e preveja antes de agir.

Cabem como uma luva nas mãos dos protagonistas envolvidos no imbróglio das falsificações de certificados de vacinação, a partir do ex-presidente Jair Bolsonaro. Não sabia ele o que fazia seu ajudante de ordens, tenente-coronel Mauro Cid? E este, usou ou não um computador do Palácio do Planalto, para acessar os endereços eletrônicos do Ministério da Saúde com o intuito de arrumar documentos demonstrando a vacinação de seu chefe e familiares?

Voltemos à trilha da mentira, uma das maiores pragas da humanidade. As falsas versões devastam reputações e são tão danosas ao espírito do tempo quanto a maldita covid-19, responsável pelo morticínio no planeta nos últimos anos. Triste é constatar que, enquanto a ciência avança, a tecnologia e a inteligência artificial descobrem trilhas do progresso biológico, contribuindo para o aumento da vida útil dos seres humanos, mas a mentira e suas variantes – versões farsescas, abordagens estapafúrdias, visões apocalípticas – ganham volume nas narrativas comandadas por gabinetes de ódio, usuários de teias tecnológicas. As redes sociais transformam-se em iluminadas vitrines do ego, divulgando falsa propaganda, trocando vitupérios, ignorando os danos de sua existência sobre a humanidade. Buda já dizia: “O conflito não é entre o bem e o mal, mas entre o conhecimento e a ignorância.”

Um homem sem curvas expressa sinceridade ao conferir força ao caráter das palavras. Já o caráter das palavras se espelha na riqueza de detalhes, nas minudências, esses pequenos arremates de ideias e lembranças que brotam, de maneira instintiva, das associações men­tais de interlocutores.

Na era Collor, Eriberto França, motorista da então secretária do presidente, Ana Acioli, teria confirmado que empresas de PC Farias faziam depósitos em contas fantasmas. Um arremate de alta simbologia. O ambiente social era favorável às oposições. E um Fiat Elba virou o tormento de Collor. Hoje, o Zé Gotinha, como bem expressou o jornalista Octávio Guedes, da Globo News, tende a se transformar no Fiat de Bolsonaro.

O fato é que o “mentirário” (o confessionário das vacinas) está sendo puxado à superfície, ameaçando fechar os horizontes eleitorais de Jair Messias. Não é de hoje que se escreve a história com falsas versões. O ex-presidente encontra-se entre a cruz e a caldeirinha. (É possível que os integrantes do batalhão lulista não consigam avançar no terreno das CPIs e deem, de mão beijada, o troféu para o bolsonarismo. Nesse caso, o capitão vislumbrará uma porta aberta para o amanhã.)

Con­fúcio (quem diria, hein?) falsificou um calendário histórico chinês alterando algumas palavras. O texto original dizia: “O senhor de Kun condenou à morte o filósofo por ter dito frito e cozido”. O sábio subs­tituiu a expressão “condenou à morte” por “assassinou”. Lenin queria descrever a exploração e a opressão da Ilha Sakalina pela burguesia russa. Ameaçado pela polícia do czar, substituiu Rússia por Japão e Sakalina por Coreia.

A subtração ou acréscimo nas letras da história tem sido um subterfúgio de homens que mexem com ideias para satisfazer o ego e preservar poder.

A dúvida remanesce: e a democracia não tem de pagar um preço? A honra, a honestidade, a lisura não são valores inalienáveis do paradigma da administração pública? Ou é o caso de fazer valer a ética dos poderosos sobre a ética dos humildes?

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