Uma cadeira precisa de equilíbrio para atender à sua razão de ser, sustentar o peso de uma pessoa, demanda para a qual foi criada para longo período. Elas distribuem o peso de maneira que a sustentação se torna possível. A vida é dinâmica e se movimentar é algo que fazemos o tempo todo, mas a cadeira traz conforto, descanso e mesmo forma de deixar o corpo estabilizado em termos de posição no espaço e tempo para atividades que possam ser desenvolvidas sem o movimento. Elas devem ter a capacidade de sustentar quem senta e a resistência das suas pernas depende da espessura, tipo de material, altura e, é claro, das características físicas de quem nela senta. Quando esse conjunto não é considerado, algum dano pode ocorrer com as pessoas e com o artefato.
Na vida temos cadeiras com quatro pernas. São as mais comuns, inclusive porque são mais fáceis de serem estruturadas e, ao mesmo tempo, avaliadas em termos de utilidade. De qualquer forma, levam em conta funções diferentes na sustentação dianteira e na sustentação traseira. Não sei quando alguém criou a cadeira, mas imagino que foi um avanço interessante para uma alternativa de descanso, conforto e convívio com pessoas. Uma inovação disruptiva de milhares de anos atrás, que permitiu usar a mesa como elemento de convívio para refeições, trabalho e lazer. Espera: e se a mesa foi criada antes? Bom, os estudiosos podem esclarecer de maneira mais adequada quem foi criada primeiro.
Numa metáfora estrutural na trajetória da vida temos algum tipo de cadeira. Ela se altera ao longo da vida em tamanho e complexidade, mas é isso que faz com que a vida seja algo viável e que valha a pena. Com alegrias, sucesso e mesmo com dificuldades, crises e situações que pareçam não ter saída, o apoio da cadeira faz a vida seguir. As pernas da cadeira da vida se alteram e alternam na capacidade de suporte, impacto sobre direcionamento e mesmo sobre como olhar a vida.
Algumas “pernas” são relativamente fáceis de serem percebidas, como o recurso financeiro. Não precisa ser a primeira, nem a mais importante sempre, mas permite o acesso a inúmeras coisas, prazeres, vivências e situações. Em princípio, o recurso financeiro na nossa sociedade proporciona acesso à autonomia, à qualidade de vida, ao desenvolvimento das pessoas e à obtenção de bens dos mais variados tipos. A disponibilidade de recursos financeiros é um fator relevante para inclusão e melhoria de vida das pessoas. Contudo, entender que a perna financeira possa resolver todos os problemas da vida é um equívoco às vezes só percebido no limite da crença, quando a evidência do seu esgotamento ocorre. Ninguém rasga dinheiro, mas a incerteza do mundo em que vivemos nos faz buscar muito mais do que precisamos. A grande chance de equilíbrio está nas demais pernas. Se elas não forem relevantes, vamos viver buscando acumulação de recursos em coisas “menos necessárias”. O destaque para “menos necessárias”, a seu gosto, pode ser deletado para evitar demanda por aprofundamento filosófico perfeitamente compatível, mas que não cabe nesta reflexão.
Temos várias outras possibilidades de pernas para a cadeira da vida e vou escolher algumas que considero mais relevantes. A segunda perna está ligada ao grupo de afeto. Vou chamar assim a família e amigos próximos. São dois grupos que misturei, e que podem ser diferentes entre si, mas que proporcionam apoio e um gosto muito importante na vida; gosto na vida e pela vida, o gosto de ser e conviver com gente. O prazer de conviver com gente, crescer com gente, sofrer por gente e sofrer com gente. Sem isso a humanidade, com todas as suas oportunidades e desafios, perde qualquer sentido. São esses personagens que proporcionam a alegria, a decepção, a dor, a satisfação, e mesmo alimentam os sonhos. É para isso que, basicamente, estamos por aqui: ou seja, conviver com pessoas. Podem servir, inclusive, para amparo quando o recurso financeiro faltar ao longo da estrada. Ou amparar outrem quando necessário. Quando ter mais dinheiro ou menos dinheiro alterar a composição e relevância do grupo de afeto, e isso pode acontecer, está na hora de uma paradinha para reflexão e ver se o “gosto pela vida” se mantém.
A terceira perna está ligada à realização que vou chamar de profissional, nas mais diversas abordagens. Não se trata apenas de fazer o que gosta e gostar do que faz, mas uma mistura de competência com resultados. Afinal, quem aceita viver nesse mundo sem vivenciar alguma dose de sucesso como profissional e/ou artístico e/ou esportivo? Definir sucesso é bem complicado pois tem uma lógica individual e outra claramente interligada ao coletivo nesse mundo das mídias. Ganhar dinheiro é uma forma de ter sucesso. Ter alguém que possa amar e ser amado é outra. Participar da criação e desenvolvimento de uma organização com rápido crescimento também. Gerar benefício para outrem, impactando a sociedade, também cabe perfeitamente.
Ser seguido por um punhado de pessoas, só porque postou uma foto ou frase chocante, pode ser um motivo efêmero de sucesso que pode influenciar as outras pernas. Não é disso que estou falando quando menciono o sucesso, mas de uma construção mais densa, consistente e de longo prazo ao longo da trajetória da vida. Aqui cabem vários olhares, como a atividade empresarial, desenvolvimento de serviços e produtos, e muito fortemente, atividades de gestão, nos mais variados níveis. Entram também todo o desenvolvimento científico e educacional, sendo que o sucesso deveria ter uma vertente muito forte nas várias áreas do conhecimento, muitas vezes discretas, mas efetivas na vida das pessoas, e não só aquelas do núcleo afetivo. Esta perna precisa de um alicerce institucional, de várias dimensões, que apoie, cobre, acompanhe e reconheça o sucesso, especificado por organizações em geral, empresas privadas, universidades, grupos de pesquisa, organizações públicas, órgãos reguladores e de apoio, por exemplo.
A quarta perna da cadeira me parece hoje razoavelmente esquecida ou, quando muito, não valorizada. Diria que é quase uma perna envergonhada. Foge do tangível, do concreto, embora esteja latente na vida das pessoas. Trata-se da perna espiritual, seja qual for a abordagem metafisica considerada. Ela deveria ter o poder de avançar no olhar para a vida trazendo apoio aos sonhos e alento para as frustrações. Diferentemente do dinheiro, que pode ser objetivado e evidenciado, ou então do grupo de afeto, com a existência de pessoas e ações por parte deles, ou então evidências de atividades profissionais de alguma ordem, com evolução de trajetória, a perna espiritual depende basicamente de crenças e valores adquiridos ao longo da vida e é íntima e individual.
Podem ser encontradas inúmeras portas para o tema e escolhi algumas abordagens que considero adequadas para este texto. A primeira que escolhi está relacionada à área da saúde onde existem estudos tratando o tema e podemos considerar pesquisa sobre profissionais de enfermagem, que vivem na fronteira das vidas das pessoas. A absoluta maioria da amostra, composta de estudantes, indica que existe uma necessidade de uma abordagem de espiritualidade no seu treinamento, bem como no tratamento dos pacientes. Contudo, a mesma pesquisa indica que essa abordagem não é oferecida adequadamente, sendo uma carência. É interessante perceber a necessidade para quem lida e precisa de respostas para a vida, embora possa ter tecnologia, conhecimentos, apoio médico e presença dos grupos afetivos. As pernas se complementam.
Outra pesquisa, voltada para o ambiente organizacional, tem a perna espiritual, como antecedente, influenciando posicionamento sobre responsabilidades sociais corporativas, tema atual que trata a sustentabilidade ambiental, por exemplo. Como ponto de partida, considera que princípios espirituais afetam as questões morais e éticas no nível pessoal, a partir de crenças e valores. A partir da pesquisa, conclui que existe associação positiva entre a espiritualidade e o idealismo impactando o desenvolvimento das ações referentes às responsabilidades sociais corporativas. Os autores reconhecem que é bastante complexo separar espiritualidade e religiosidade quando se investiga o tema, mas não é argumento para simplesmente ignorá-lo.
Outro estudo, dentro do ambiente profissional, pelo trabalho de Weeratunga & Singh, é por eles denominado de inteligência espiritual, elemento que pretendem associar ao alto desempenho e produtividade. O estudo foi iniciado com a perspectiva de entender elementos que associados à permanência dos funcionários nas organizações apresentam estágios e elementos de análise para a inteligência espiritual. A percepção de que ela afeta as questões emocionais é importante. No caso citado, evidencia que os gestores enfatizavam elementos de atração tangíveis enquanto os funcionários estavam mais desejosos de atenção para elementos intangíveis, que a inteligência espiritual indicava. Também se revelou a importância do ambiente organizacional estar alinhado à demanda da inteligência espiritual, no mínimo, não ignorando.
A última vertente escolhida diz respeito a uma perspectiva que tenha o olhar da psicologia, proporcionada por Viktor E. Frankel, um sobrevivente de Auschwitz. No seu livro A presença ignorada de Deus, indica que a figura do divino faz parte da necessidade humana, traduzida da forma que for, sendo uma dimensão que proporciona apoio ao imponderável e, talvez, o insuperável como dimensão de limite para o ser humano. De alguma forma a perna espiritual proporciona esperança, alarga o horizonte temporal e impacta a resiliência dos indivíduos, principalmente quando as outras pernas não se mostram capazes de oferecer as respostas desejadas. Não pretendo adentrar num terreno possível da operacionalização do tema, ou seja, as religiões, mas, de alguma forma, elas moldam a espiritualidade, com influências enormes sobre as quatro pernas.
Como mencionado, o dinamismo da vida faz parte da forma como olhamos as pernas da cadeira, sendo que dois elementos afetam profundamente as mudanças e ajustes das nossas cadeiras: o passar do tempo e as tensões da vida. O tempo vai ajustando o contexto e o grau de maturidade. As pessoas oscilam entre o EU e o NÓS, no equilibro das pernas, e ao longo do tempo se perguntam se precisam provar algo para alguém ou se se consideram maduras para direcionar suas movimentações com maior liberdade e independência. Por sua vez, as tensões, frutos da nossa interação com o meio, com os vários ambientes, pressionam para que soluções para os desafios sejam encontradas e o relativo equilíbrio e força das quatro pernas proporcionem uma continuidade de trajetória com opções de relativo controle do stress e qualidade do que se entenda como sucesso.
Nos ciclos de crescimento e de recursos da vida, provavelmente não nos daremos conta da intensidade do desafio das dificuldades e, quem sabe, as três primeiras pernas poderão suprir as necessidades, mas, durante a vida, provavelmente isso não será sempre assim. Frankel, em Auschwitz, não tinha dinheiro, perdeu todos os seus amados e não tinha a satisfação de atuar de alguma forma, ou mesmo, perdeu a liberdade de ir e vir. Ele se apegou a algo na linha da quarta perna para a sustentação e motivação para continuar vivendo e contar para nós a sua visão psicológica. Só isso já é uma boa reflexão.
Uma base filosófica sempre é muito relevante, mas, no caso da cadeira, o que precisamos é da prática pessoal, individual. Certamente, alguns problemas que acreditamos ter podem ser melhor entendidos, explicados e direcionados com um reequilíbrio das pernas da cadeira. Bom, tem também a cadeira com três pernas. Pode ser uma escolha, mas perceba que o peso sobre as outras vai ser diferente e a escolha sempre será sua, principalmente no momento em que a humanidade tem crescimento temporal na expectativa de vida, mas em que deveria se preocupar muito mais com a qualidade dessa vida adicional.
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