Por que a Vai Vai incomoda(ou)?

Por Dennis de Oliveira, professor da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP

 21/02/2024 - Publicado há 2 meses

No desfile das escolas de samba de São Paulo do Carnaval deste ano, a escola de samba Vai-Vai apresentou o enredo Capítulo 4, Versículo 3 – Da rua e do povo, o Hip Hop – Um manifesto paulistano, baseado na obra Sobrevivendo no Inferno do Racionais MC’s. O enredo foi uma releitura dos movimentos artístico-culturais de São Paulo, iniciando com uma crítica à Semana de Arte Moderna de 1922, retratada como uma vanguarda artística ainda dentro dos parâmetros da elite aristocrática da cidade e, em contraponto, a emersão de um outro movimento que vem das periferias que enfrenta a desigualdade social (retratada em uma das alegorias, ratos que sustentam a sofisticação), o racismo e a violência policial. Um cenário de opressão, existência e resistência.

Em determinada ala, policiais são retratados como seres diabólicos que circundam os artistas do hip-hop. O encarceramento em massa de jovens negros também foi retratado pela escola na avenida. E o desfile finaliza com a estátua de Borba Gato sendo “pixada” e “incendiada” sinalizando para a necessidade de ruptura radical com uma ordem opressiva.

Um desfile que incomodou vários setores.

O primeiro, e mais evidente, foi a Polícia. Sindicato dos delegados da Polícia soltaram nota de repúdio à escola de samba por “demonizar a polícia” e exigiu que agremiação fizesse uma “retratação pública” (ver matéria). Já os mais contundentes foram parlamentares da chamada “bancada da bala”. O deputado federal Capitão Augusto e o deputado estadual Dani Alonso, ambos do Partido Liberal de São Paulo, oficiaram ao governador Tarcísio de Freitas e ao prefeito da capital, Ricardo Nunes, que bloqueassem o repasse de recursos à escola por ter difamado a instituição da Polícia Militar com o desfile. Em sua defesa, a diretoria da Vai Vai disse que o desfile seguiu o enredo baseado no álbum do Racionais em que a crítica à violência policial é a tônica.

Logo após essas polêmicas, o jornal Folha de S. Paulo noticiou, no dia 14 de fevereiro (quarta-feira de cinzas), que “suspeito de chefiar PCC emprestou R$ 300 mil para Vai Vai desfilar em 2022“. Esta ideia de vínculo da escola com o PCC já havia sido noticiada pelo mesmo jornal em dezembro do ano passado (“Investigação aponta Vai-Vai como reduto do PCC“) e repercutiu em outros portais, como o portal Metrópole. Mario Sabino, colunista do portal e conhecido pelos seus posicionamentos de direita, principalmente quando diretor de redação da revista Veja, afirma em sua coluna que “na geleia geral brasileira, está dado que a bandidagem comanda o espetáculo de brilhos, bundas e crítica social“. E, como forma de retratação, Sabino defende que a Vai Vai deveria, em 2025, apresentar como enredo como o PCC mata jovens pretos e periféricos.

O que é interessante é que esta denúncia de elo da escola com o PCC foi requentada justamente neste momento de polêmica, dando sustentação a uma narrativa de que “quem critica a polícia é bandido”. Uma forma de criminalizar vozes dissidentes da ordem social.

E serviu para mobilizar a extrema direita: o deputado bolsonarista Paulo Bylinskji quer que a Câmara dos Deputados convoque o ministro Silvio Almeida para explicar por que “desfilou” na Vai-Vai num enredo que criminaliza a polícia e ainda ao lado do líder dos motoboys, Paulo Galo, acusado de ter liderado a ação que incendiou a estátua de Borba Gato em 2021.

Mas por que o desfile da Vai Vai incomodou tanto?

Primeiro por retratar um dos principais elementos do movimento hip-hop paulistano: o de ser um grito da periferia contra a violência policial nos anos 1980 por meio de um dos mais emblemáticos álbuns do Racionais, o Sobrevivendo no Inferno. Ao dar voz a este movimento, aproveitando a visibilidade midiática dos desfiles de escolas de samba, a Vai Vai rompeu o cerco do silenciamento que possibilita que diariamente se assassine um jovem negro a cada 21 minutos nos territórios periféricos no Brasil. É o silenciamento que permite o genocídio da população negra periférica.

Contra isto, a criminalização. Não foi à toa que veículos midiáticos repercutiram esta pauta do elo da Vai Vai com o PCC justamente na esteira desta repercussão. Querendo ou não, endossaram a lógica da extrema direita de quem critica a violência policial é bandido. Da mesma forma que o deputado que quer convocar o ministro Silvio Almeida requenta a tese furada de que o ministro financiou a “dama do tráfico”.

Porém, há uma outra dimensão mais oculta. A Vai Vai saiu do terreno do “equilíbrio de antagonismos”, uma concepção liberal freyriana (de Gilberto Freyre) de gerenciar a diversidade ainda hegemônica quando se trata de se pensar cultura no Brasil. O carnaval negro, que durante muito tempo foi criminalizado, se impôs como ação cultural e a tolerância para que pretos e pobres assumam certo protagonismo nesta festa vai até o limite onde as contradições não são explicitadas.

O conceito de equilíbrio de antagonismos ainda pauta boa parte do pensamento brasileiro. Não é um conceito de Freyre, ele está presente já em tratados políticos britânicos no século 19, que observavam que os antagonismos entre classes e outros agrupamentos sociais no nascente capitalismo industrial britânico podem ser equilibrados nos espaços institucionais parlamentares.

A originalidade do pensamento de Freyre foi observar que esses antagonismos na sociedade colonial brasileira eram equilibrados no seio da família patriarcal – a ausência de uma estrutura institucional de Estado mais presente deslocava a negociação destes antagonismos para a vida familiar, afetiva, cultural. Por isto, ao mesmo tempo que a característica patriarcal da sociedade brasileira colonial gerava antagonismos profundos, também construía mecanismos originais de negociação e equilíbrio, no pensamento freyriano.

É neste sentido que o arquétipo do “pardo” ou do “mestiço” tem um sentido político-ideológico, pois representa uma superação dos antagonismos de classe racializados no escravismo por meio das próprias estruturas patriarcais que sustentavam esses antagonismos. Quando se fala que o Brasil é um “país de pardos” e não uma “nação negra” é exatamente este o sentido, não se trata da cor da pele mais escura ou mais clara e nem tampouco de mistura ou não de raças (o que é extremamente problemático pois parte-se de um pressuposto de existência de “raças puras”). O arquétipo do “pardo” simboliza este equilíbrio de antagonismos que tanto legitima a dominação de classe como também a branquitude normativa, que não necessariamente se expressa pela segregação de negros e indígenas mas também pelo que o antropólogo Darcy Ribeiro chama de “tolerância opressiva” (tolerar o outro para reinar sobre os seus corpos e mentes).

O enredo da escola de samba Mocidade Alegre, vencedora inquestionável e com todos os méritos do Carnaval paulistano deste ano, é um exemplo do que é tolerado. O enredo Brasileia Desvairada: a Busca de Mário de Andrade por um País retrata a diversidade cultural brasileira a partir do olhar de um intelectual icônico do Modernismo paulista. Mário de Andrade, “mestiço” (portanto, produto do equilíbrio de antagonismos) tendo como fulcro a sua condição de intelectual do Modernismo paulista (portanto, dentro da universalidade iluminista cultural) é o protagonista da narrativa da diversidade. Nesta imagem icônica de Mário de Andrade é esvaziada a sua negritude (tanto é que ele é interpretado, tanto no desfile da Mocidade como em várias outras peças teatrais, por Pascoal da Conceição, ator consagrado e dotado de capital cultural e simbólico) e a sua condição socioeconômica mais desfavorável comparada com os demais intelectuais do movimento de 1922.

Assim, esta diversidade aparece como um caleidoscópio, uma carnavalização que possibilita que os antagonismos sociais (de classe e raça) sejam dirimidos na geleia geral da cultura, como defendia Gilberto Freyre. As máscaras das fantasias aqui possibilitam o que Gilberto Freyre chama de metarracialidade, uma universalização do povo brasileiro com a plena realização dos processos de equilíbrio de antagonismos realizados por fora das estruturas políticas. Esta é uma das principais consequências deste pensamento freyriano: a possibilidade de enfrentamento do racismo meramente na dimensão comportamental, nas relações privadas ou particulares. Daí que a má vontade em discutir o problema do racismo no campo da Grande Política incomoda tanto intelectuais de direita como de esquerda.

O incômodo que o ministro Silvio Almeida desperta em muitos brancos “progressistas” (além dos fascistas) porque é um intelectual negro que, do seu lugar de homem negro, expressa uma narrativa universalizante e científica. E, no momento, é o sujeito que protagoniza institucionalmente não a agenda “de negros” ou da “cultura negra”, mas dos direitos humanos. Isto se conecta com a crítica que a Vai Vai faz do lugar de origem da Semana de Arte Moderna ou mesmo do símbolo do bandeirantismo brasileiro da estátua de Borba Gato.

Stuart Hall afirma que a cultura nacional é um discurso, um modo de construir sentidos que influencia e organiza tanto nossas ações quanto a concepção que temos de nós mesmos. Chegar a uma síntese que apaga antagonismos historicamente construídos e que não foram equilibrados – a violência brutal contra a população negra em todos os campos, em especial nas periferias, é um indicador disto – tanto dá as bases para a extrema direita para criminalizar pessoas pretas e pobres como tranquiliza quem defende bandeiras democráticas sem se comprometer explicitamente em romper com estruturas de poder que lhe dão privilégios.

A Vai Vai está sem quadra já que ela foi desapropriada para a construção da estação do Metrô. As escavações para as obras do Metrô descobriram vestígios da existência de um quilombo na região e há um forte movimento de defesa do patrimônio da Saracura. Trata-se de conflitos de significações do território urbano, é o direito à cidade que se debate. A Vai Vai incomodou pelo enredo de 2024. Mas incomoda há muito tempo por reunir milhares de pretos e trabalhadores no centro da cidade.

Milton Santos afirma que o capital é quem organiza o território. A necropolítica da violência policial serve para instituir uma reorganização dos espaços territoriais na lógica da colonização.

Construir uma universalidade acima das contradições para dar conta desta diversidade, seja pela criminalização do outro ou pelo apagamento dos antagonismos considerando-os que eles se equilibram na visibilidade das suas expressões, tem suas diferenças de enfoque, mas ambas contribuem para apartar a maioria do povo, preto, pobre, trabalhador, da periferia, muito distante de qualquer democracia substantiva.
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