A defesa da letalidade policial e o fortalecimento do crime organizado em SP e no Brasil

Por Bruno Paes Manso, pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da USP

 12/08/2024 - Publicado há 3 meses

O Brasil vem testemunhando nas últimas décadas a persistência de uma mentalidade populista na área de segurança pública que associa a letalidade policial com a disposição das autoridades para combater o crime. Essa crença dialoga com um senso comum antigo, formado ao longo de 350 anos de escravidão, que se reinventou para permanecer atual. A violência policial, nos dias de hoje, é celebrada nesses grupos como um instrumento para a produção de ordem e obediência em uma sociedade desigual, sem um projeto coletivo, que teme e enxerga a própria população como inimiga.

Vistos como ameaças em potencial, os tais inimigos são quase sempre homens, jovens, negros e pobres, que devem ser combatidos para a proteção dos demais.

O uso da violência por agentes do Estado é ao mesmo tempo autodestrutivo e popular. Recebe aplausos, apesar da medida ser ineficiente e contribuir para aumentar a desordem e o crime. É difícil desconstruir e contra-argumentar com ideias tão arraigadas, apesar de erradas. Os defensores dos direitos humanos seguem estigmatizados, como se fossem condescendentes com o crime. A sensação cotidiana de medo cria pessoas dispostas a aceitar e apoiar qualquer ação destrambelhada que aparenta protegê-lo em curto prazo, não importando os efeitos colaterais.

A história recente de São Paulo e do Rio de Janeiro vem mostrando, contudo, como essas crenças e medidas populistas na área da segurança pública, ao invés de promover a ordem, fortalecem o crime organizado e colaboram para fomentar a sensação de caos. Ironicamente, quem ganha dinheiro e poder com a desordem e o medo são os mesmos populistas que colaboram para aumentá-los.

Alguns fatos recentes ajudam a compreender como a defesa da letalidade policial tem contribuído para aumentar e fortalecer o crime.

1) Massacre do Carandiru. Um ano depois da chacina de 111 presos, ocorrida em outubro de 1992, nasceu o Primeiro Comando da Capital (PCC). Muitos imaginaram que as mortes dos detentos fariam os criminosos recuarem, mas ocorreu o inverso. Eles reagiram, se organizaram e seguem cada vez mais fortes, 30 anos depois. O massacre constou no estatuto de fundação da facção, servindo de estímulo para o discurso de união dos presos e de guerra contra o sistema.

2) Caso Castelinho. Durante a década de 1990, o governo paulista negou a existência do PCC. Depois de uma megarrebelião, em fevereiro de 2001, que mobilizou 29 presídios e levantou faixas do grupo diante das câmeras de televisão, não era mais possível negar. Em resposta, o governo paulista decidiu agir e mais uma vez apelou para a violência. Primeiro, a polícia recrutou presos que atuaram como infiltrados e induziram criminosos a realizar um assalto no interior de São Paulo. Os criminosos fretaram um ônibus para chegar a um aeroporto em que o crime ocorreria. Ao passar pelo pedágio da Rodovia Castelinho, entre Itu e Sorocaba, cerca de 100 policiais dispararam mais de 700 tiros em direção ao ônibus. Doze pessoas da quadrilha morreram. O PCC, em vez de recuar, iniciou uma nova ofensiva. No ano seguinte, matou o juiz corregedor de Presidente Prudente, José Machado Dias. Marcola assumiria a liderança do PCC nesse mesmo ano e daria início ao ingresso da facção no comércio de drogas brasileiro. Depois da Castelinho, o PCC entrou no mercado das drogas e expandiu sua rede de contatos para além das fronteiras do continente.

3) Crimes de maio de 2006. O PCC atacou primeiro, numa tentativa de desafiar o governo paulista e mostrar força. Organizou uma segunda megarrebelião em 79 presídios, e seus integrantes dispararam contra delegacias, batalhões, incendiaram ônibus e mataram 59 policiais e agentes de segurança. Nunca São Paulo havia visto nada parecido. O troco veio nos dias seguintes: 425 pessoas foram assassinadas em uma semana. Apesar da falta de investigação, muitos testemunharam que as mortes ocorreram a partir da ação de grupos de extermínio. As Mães de Maio, liderado por Debora Silva, que teve seu filho assassinado no período, foi montado para mobilizar outras mães que perderam seus filhos para a violência policial. Longe de coibir a ação do crime, a partir de 2006, Marcola e seus aliados perceberam que o PCC deveria alçar novos voos e ultrapassar as fronteiras da América do Sul. Acessaram produtores de droga em países como Colômbia, Peru, Bolívia e Paraguai e conseguiram se afastar do dia a dia dos conflitos nas quebradas.

4) Espraiamento da violência policial e das gangues prisionais. O modelo de segurança paulista, baseado em patrulhamento ostensivo e aprisionamento em massa, ajudou a espalhar as facções pelo Brasil. Os 90 mil presos dos anos 1990 ultrapassaram a casa dos 800 mil atualmente. A violência policial também cresceu. Desde 2018, são mais de seis mil mortos por ano pelas polícias brasileiras, que se consolidaram como a força mais letal do mundo. O crescimento da violência policial e das prisões, ao invés de fragilizar o crime, disseminou as gangues pelos presídios do País, que já ultrapassam os 70 grupos. PCC e Comando Vermelho têm dimensão nacional. Outros têm alcance regional e local. Formam uma rede mais conectada e capaz de transportar e vender grandes quantidades de droga.

5) Milícias. O aumento da violência policial fragilizou o controle dos governos sobre as polícias. A violência policial veio junto com a corrupção nas corporações. A carta branca aos policiais para matar acabou dando poder de vida e morte sobre os integrantes do mundo do crime. Muitos policiais aproveitaram para ganhar dinheiro e faturar no mundo do crime. Além disso, o aumento do capital da droga – que passou a ser contabilizado em dólar – ampliou a capacidade dos traficantes de corromper policiais. As milícias do Rio são o resultado mais dramático desse descontrole, mas outros grupos paramilitares se multiplicaram pelo País.

Apesar das evidências, políticos populistas seguem apostando no erro e recebendo aplausos de parte da população. O governador do Rio, Claudio Castro, no ano que antecedeu a disputa para a reeleição em 2022, viu a polícia do estado matar 69 pessoas em três operações ocorridas nas comunidades de Jacarezinho, Vila Cruzeiro e Complexo do Alemão. Mesmo assim, acabou sendo eleito no primeiro turno, ganhando de Marcelo Freixo, candidato conhecido por seu histórico de defesa dos direitos humanos e de combate às milícias.

Já o governador paulista, Tarcísio de Freitas, autorizou duas operações letais na Baixada Santista, que matou 73 pessoas ao longo de 80 dias. A violência policial paulista seguiu em alta no primeiro semestre deste ano, com crescimento de 71% em relação ao mesmo período do ano passado.

Longe de promover a ordem e reduzir o crime, portanto, as medidas populistas como as aplicadas no passado recente vêm promovendo o caos. Esses políticos dependem do crime e do medo para se fortalecer política e economicamente. As pessoas precisam compreender que estão sendo enganadas pelas suas emoções, que dificultam observar o quadro com mais racionalidade. Sem crime, a Bancada da Bala e os populistas da segurança perdem sua razão de ser. Eles apostam na desordem. Infelizmente, pesquisadores e comunicadores, grupo no qual estou incluído, ainda não conseguimos explicar por que os defensores dos direitos humanos representam a ordem e o controle do crime. E a segurança pública segue um dos dramas principais do Brasil.

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