A Independência sob as lentes da USP

Por Alexandre Macchione Saes, professor do Departamento de Economia da FEA/USP

 10/10/2022 - Publicado há 2 anos

A Independência do Brasil, tanto como marco político da formação nacional como objeto historiográfico de relevância incontestável, recebeu nas últimas seis décadas marcantes contribuições por parte dos pesquisadores da Universidade de São Paulo.

Conforme a conhecida máxima do historiador britânico Edward Carr, toda a narrativa histórica é um confronto contínuo entre o historiador e suas fontes, como também um embate entre o passado e o presente. Assim, a trajetória das contribuições da USP sobre a Independência revela não somente a contínua renovação de sua produção científica, como também, por meio das temáticas enfatizadas e das interpretações defendidas em cada contexto, oferece indícios de como a sociedade brasileira se encontrou nessas seis décadas com essa simbólica data e quais eram os projetos de nação em disputa.

Sem poder ser exaustivo, considerando que a produção da USP sobre a temática é ampla, ressaltamos quatro projetos coletivos, organizados por docentes da Universidade, que refletem o estado da arte da pesquisa e o espírito político em diferentes contextos históricos.

Foi Sérgio Buarque de Holanda quem ofereceu a primeira grande obra organizada a partir de docentes da Universidade de São Paulo. Intelectual consagrado por Raízes do Brasil, como professor da USP foi responsável pela organização da coleção História Geral da Civilização Brasileira, um relevante marco na historiografia nacional. Publicado nos 140 anos da Independência, o volume I do tomo II, O processo de emancipação (Difel, 1962), era composto de ensaios elaborados por 12 reconhecidos pesquisadores, seis deles docentes da USP.

Inaugurando o volume, Sérgio Buarque de Holanda publica o capítulo “A herança colonial, sua desagregação”, inscrevendo a Independência num quadro de longa duração, em que a separação de Portugal e a unidade e formação da nacionalidade são vistos como processos dissociados. Alongando o processo entre os marcos de 1808 e 1831, a transação “entre o nosso passado colonial e as nossas instituições nacionais” refuta a ideia de um processo revolucionário, conduzido sem o povo e com a apropriação seletiva de ideais liberais. Publicado em 1962, o capítulo de Sérgio Buarque denunciava a ausência de instituições democráticas no processo de emancipação do País, o que de certa maneira era um prenúncio da crise que se vislumbrava sobre a democracia ainda em formação.

Dez anos mais tarde, agora já no auge da ditadura militar, Carlos Guilherme Mota organizou 1822: Dimensões (Perspectiva, 1972), obra contando com a participação da nova geração de historiadores da USP, Maria Odila Leite da Silva Dias, Emília Viotti da Costa e Fernando Novais. Contrapondo-se a perspectiva ufanista da Independência empreendida pela ditadura durante as celebrações do sesquicentenário, artigos como os de Mota e Novais inseriam o processo de emancipação num quadro amplo, articulando a crise do Antigo Regime ao do Antigo Sistema Colonial. Reverberando as teses da dependência tão difundidas no período, os textos problematizavam a ideia da Independência, por sua incompletude na dimensão econômica, num contexto de expansão do capitalismo liderado pela Inglaterra.

Os ares da redemocratização e da renovação historiográfica atingiriam em cheio a produção sobre a Independência nas últimas décadas do século 20. Beneficiando-se deste estimulante ambiente, o projeto temático da Fapesp, coordenado por István Jancsó, ofereceria novos e relevantes resultados de pesquisa sobre a Independência do Brasil na primeira década do século 21: Formação do Estado e da Nação (Hucitec, 2003) e Independência: História e Historiografia (Hucitec, 2005). Duas coletâneas com a participação de pesquisadores de todo o País e colaborações internacionais que traziam como eixos fundamentais, respectivamente, a dimensão de construção do Estado e a noção da Independência como um mosaico de experiências.

O projeto materializava a tendência historiográfica de ampliar os olhares para o processo de Independência, abarcando variada gama de espaços e personagens – para além das disputas na Corte e o grito às margens do Ipiranga. O alargamento do horizonte iluminou a atuação de grupos silenciados pelas versões canônicas da história, tais como as camadas populares, os escravizados e as mulheres, dando visibilidade também para a existência de diferentes projetos de país em disputa. Novas versões sobre uma história que permitia olhar para os caminhos não percorridos e oferecia novas respostas para um futuro que parecia estar em construção.

Em 2022, se a conjuntura da celebração dos 200 anos de Brasil entrega poucos motivos para a sociedade comemorar, por outro lado, o vigor historiográfico contemporâneo, sustentado por pesquisas que buscam questionar o histórico silenciamento de vozes e de grupo sociais, nos permite almejar a diversidade, em suas múltiplas dimensões, em nossos horizontes de expectativa. O Dicionário da Independência do Brasil (BBM/Edusp, 2022), organizado por Cecília Helena de Salles Oliveira e João Paulo Pimenta, surge neste ano de 2022 como uma das obras mais completas sobre o episódio, representando as ideias e as interpretações de nossa geração sobre a Independência, composto de 765 verbetes, por meio da contribuição de mais de 270 pesquisadores.

Uma síntese das contribuições que seguiram a esteira do projeto iniciado por István Jancsó, que ilumina o papel de um diversificado rol de personagens, de eventos e de localidades neste processo político. Evento descortinado em toda sua complexidade, que explicita os diversos projetos de Brasil em disputa no passado. O Dicionário da Independência do Brasil apresenta, desta forma, não somente o estado da arte do conhecimento histórico sobre o tema, como também defende, ao aceitar a história do País por meio do confronto das narrativas canônicas com as renegadas, um projeto de país democrático, plural e mais justo, de uma Independência de uma nação que ainda precisa se completar como tal.

Em suma, cada geração que se encontra com a efeméride da emancipação do País, produz sua interpretação sobre o evento, ressignifica os fatos e personagens à luz das preocupações do presente, lançando assim tanto novos sentidos sobre o passado como novos projetos de futuro. A Independência do Brasil que já teve sua versão romântica nos oitocentos, por meio do esforço de docentes da USP foi repensada a partir de uma ideia de um Brasil moderno e democrático, questionada por conta do caráter da dependência econômica, avaliada a partir de um mosaico de vozes e perspectivas.

No contexto dos 200 anos de Independência não deixa de ser paradoxal o caráter das recentes contribuições sobre o evento e o resultado eleitoral descortinado no pleito de 2 de outubro. A ampliação de nosso conhecimento sobre a Independência, a difusão dos projetos de Brasil não concretizados e a democratização do passado como instrumento de construção de utopias parece não alcançar a sociedade em geral. A eleição explicitou a força política de grupos que disseminam a ideia de uma Independência a partir da narrativa de caráter autoritário e da naturalização das estruturas arcaicas de nossa sociedade.

A frase de Celso Furtado proferida no início dos anos 2000 parece fazer ainda mais sentido hoje: “Em nenhum momento de nossa história foi tão grande a distância entre o que somos e o que esperávamos ser”.


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