“Acesso restrito”: processos curatoriais e a arte afro-indígena

Por Alecsandra Matias de Oliveira, professora do Centro de Estudos Latino-Americanos sobre Cultura e Comunicação (Celacc) da Escola de Comunicações e Artes da USP

 06/09/2022 - Publicado há 2 anos     Atualizado: 08/09/2022 às 15:26

Faz escuro mas eu canto,
porque a manhã vai chegar.
Vem ver comigo, companheiro,
a cor do mundo mudar.

(Thiago de Mello, 1965)

Nos últimos anos, o circuito das grandes exposições e feiras tem refletido os estudos decoloniais no campo acadêmico e o processo de descolonização dos acervos – o resultado está na presença cada vez mais forte de proposições artísticas que discutem questões étnicas e de gênero – o apelo à diversidade tem legitimado e incentivado a produção de artistas mulheres, afrodescendentes, indígenas e LGBTQIA+. Vista como uma vertente das mais atuais, a ideia que envolve os discursos pluriversais nos dá a falsa sensação de que o sistema da arte abandonou a representação das ditas “minorias” e as transformou em protagonistas e produtoras de arte contemporânea. Ledo engano! O que existe, hoje, é uma enorme distância entre o discurso sobre a “diversidade”, os processos curatoriais e a fruição das artes visuais.

De modo algum esse assunto é inédito, e aqui evocamos especialmente as investigações de Luciara Ribeiro. Em parceria com a Rede de Pesquisa e Formação em Curadoria de Exposição e o Projeto Afro, Luciara desenvolve pesquisa que visa mapear os curadores afro-indígenas no Brasil e, além disso, tem defendido publicamente a necessidade de uma política de cotas também para os profissionais atuantes no sistema da arte. Sim, os artistas têm origens distintas, então, por que curadores, gestores, críticos e colecionadores, em sua maioria, não são diversos? E, talvez, a questão mais densa seja por que os processos curatoriais ainda são brancos? Na busca por alguns indícios que nos auxiliem nessa reflexão, recorremos a pensadores, exposições e recentes estudos que referenciam a arte afro-indígena.

No histórico das exposições, observemos os eventos com viés internacional, tais como as últimas edições da Bienal Mercosul e da Bienal de São Paulo – de certa forma, esses eventos influenciam a recepção de obras e artistas no sistema da arte. Sua repercussão no Brasil e no exterior proporciona novos convites, abordagens e modos de extroversão. Em 2018, por exemplo, O triângulo atlântico era o mote da 11ª edição da Bienal do Mercosul, com curadoria do alemão Alfons Hug. No seu projeto, Hug escolheu refletir sobre a escravidão e o apagamento sofrido pelas culturas africanas e indígenas. Nesse itinerário, o curador levantou conexões entre Brasil e África – algo que igualmente surge nas produções preocupadas com ancestralidade e representatividade.
Em 2020, a 12ª edição da Bienal do Mercosul, com curadoria da argentina Andrea Giunta e equipe integrada pela polonesa Dorota Maria Biczel e por dois curadores negros, Igor Simões e Fabiana Lopes, adotou como temática Feminismo(s) visualidades, ações e afetos. Nessa mostra, a inserção de propostas artísticas de mulheres negras deu continuidade à inflexão colocada por Hug, porém, de modo mais denso e respondeu aos pleitos atuais, discutindo os afetos, a afrocentricidade e as redes colaborativas estabelecidas entre as mulheres artistas.

Por sua vez, a 13ª edição, com curadoria-geral de Marcello Dantas e curadores adjuntos Tarsila Riso, Laura Cattani, Munir Klamt e Carolina Lauriano, com previsão de abertura para este mês, traz o título Trauma, sonho e fuga. No projeto curatorial, a intenção é a de relacionar os três fenômenos através das obras expostas. “Esse lugar da poética de um nó na garganta, de um grito não expresso, de um segredo guardado é o que buscamos mapear”, nos diz o texto de divulgação. Então, fiquemos atentos ao discurso da diversidade no desenho, na produção e na fruição desta exposição.

Dona de uma trajetória polêmica e de bruscas mudanças, a Bienal de São Paulo vem, gradativamente, afastando-se de um discurso universalizante e abrindo suas portas para vários coletivos que gravitam, ainda opacos, em torno da produção brasileira – entre eles, alguns com inserção de gênero e “minorias” afro-indígenas. Nesse contexto, assinalamos a participação de Dalton Paula, na 32ª edição, com a instalação Rota do tabaco (2016) – uma das obras mais comentadas daquela edição. Fruto de suas viagens pelas cidades de Goiás, Recôncavo Baiano e Cuba, a instalação retrata personagens negros em óleo, folhas de ouro e prata sobre alguidares. Na sua investigação, o artista nos mostra a manufatura do tabaco como atividade histórica, econômica e social. Nesses lugares que compõem a rota, ele encontrou desde a precariedade dos meios de produção nas fábricas de cigarrilhas ao uso dos charutos como ícone da revolução comunista – uma herança negra desconhecida de grande parte da população.

Mas a guinada no quesito “diversidade” para a Bienal de São Paulo se deu na 34ª. edição, conhecida como “a Bienal dos Índios”. Os versos de Thiago de Mello, “Faz escuro mas eu canto”, serviram como tema dessa edição, com curadoria de Jacopo Crivelli Visconti, Paulo Miyada, Carla Zaccagnini, Francesco Stocchi e Ruth Estévez. Nela, a diversidade dos artistas e das produções foi amplamente explorada, porém, isto não encontrou equivalência nos processos curatoriais – o espaço da Bienal, símbolo do modernismo, tornou-se prisão para essas poéticas; como diz Seligman-Silva (2022), as produções pareciam “habitar as ruínas da colonialidade”.

Já anunciada, a equipe curatorial da 35ª. Bienal, que acontece em 2023, tem a artista e escritora portuguesa Grada Kilomba; o historiador da arte espanhol Manuel Borja-Villel; a curadora, escritora e pesquisadora Diane Lima e o antropólogo e pesquisador Hélio Menezes (no corpo de curadores, é possível ver a diversidade). Há poucos dias, foram divulgados o tema do evento e o texto curatorial, que, diga-se de passagem, parece bastante hermético. Nele, os curadores questionam: “como corpos em movimento são capazes de coreografar o possível, dentro do impossível?”. O tema Coreografias do impossível aparenta algo provocativo. Será que nessa edição do evento temos a continuação dos versos de Thiago de Mello, “a manhã vai chegar”? Resta-nos aguardar para ver de fato.

Mas, regressando às nossas questões norteadoras, notamos que o sistema da arte e, por consequência, os processos curatoriais ainda apresentam uma difícil hegemonia branca. Recentemente, temos visto curadores e críticos negros e indígenas re-existindo nesse cenário – mas ainda são poucos e, alguns, trabalham sob a precariedade do título de “curadores independentes”. Simultaneamente, as produções ligadas às temáticas afro-indígenas são lançadas ao mercado de artes que tende a esvaziar qualquer discurso – somente um agente, o artista, não consegue preservar a ética/estética presente nesses trabalhos. Torna-se, então, premente o desvencilhamento de séculos de um sistema brancocêntrico e aqui Sidney Amaral nos adverte do acesso restrito.

* O título deste texto é inspirado na instalação de Sidney Amaral, artista visual e professor, falecido em 2017. Em Acesso restrito (2006), o artista subverte materiais sacralizados pela história da arte eurocêntrica, tais como mármore e bronze, em objetos usuais de trabalhadores invisibilizados – pintores, faxineiros, eletricistas, montadores, enfim, todos aqueles que ficam nos bastidores da produção de museus, galerias e grandes exposições.


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