Câncer e má sorte

José Ernesto Belizário é professor associado do Depto. de Farmacologia do Instituto de Ciências Biomédicas

 12/06/2017 - Publicado há 7 anos

José Ernesto Belizário – Foto: Arquivo pessoal

Apesar dos notáveis resultados da recente pesquisa oncogenômica, as vias de etiologia dos cânceres são ainda bastante discutidas no meio científico. Não há mais dúvidas de que são as mutações no DNA que determinam os eventos catastróficos que culminam com a proliferação desordenada de células malignas. Alguns tipos de câncer são mais frequentes entre as populações, como, por exemplo, o câncer de pele no Brasil, o que é explicado pela grande exposição ao sol, a fonte de luz UV.

Mas como explicar os casos (não muito frequente) entre fumantes, que mesmo sofrendo bombardeios diários com centenas de carcinógenos potenciais do tabaco, não desenvolvem ao longo de toda a vida um câncer de pulmão detectável? Seria uma questão de sorte ou outro fator ainda não conhecido.

Cristian Tomasetti e Bert Vogelstein, dois pesquisadores da Johns Hopkins Kimmel Cancer Center, vêm mostrando em seus estudos (amplamente aceitos na literatura) que os cânceres, na maior parte das vezes, não são causados nem por herança genética, nem por fatores ambientais, mas por “má sorte” (1,2).

Esta descoberta se fundamentou principalmente na análise do comportamento proliferativo de um tipo muito minoritário de células dispersas nos tecidos e denominadas células-tronco (stem cells). Estas células funcionam como células-mães (progenitoras) porque são as responsáveis pela autorrenovação (repopulação celular) dos tecidos.

Estes pesquisadores estimaram o número de divisões de células-tronco nos tecidos que dão origem aos tipos mais comuns de câncer, como pulmão, intestino, mama, etc. A equação para esse cálculo é simples, eles levaram em conta o número (N) de células-tronco no tecido onde esse câncer teve origem e a taxa (b) para essas células-tronco se dividirem, isto é, produzir células progenitoras e células-filhas diferenciadas normais ou malignas.

Não há mais dúvidas de que são as mutações no DNA que determinam os eventos catastróficos que culminam com a proliferação desordenada de células malignas.

Em seguida, eles calcularam a taxa de incidência (D) para cada tipo de câncer, levando em conta o risco de incidência (R) para o desenvolvimento de um câncer ao longo da vida e o número total de divisões de células-tronco.  Para chegar a esse número foi utilizada a equação D = NbT, considerando que T é igual aos anos de vida estimados para uma determinada população.

Os autores encontraram uma forte correlação (r = 0,81) entre Log R e log D e concluíram que 65% de diferenças no risco de câncer entre diferentes tecidos podem ser explicadas pelo número total de divisões de células-tronco nesses tecidos e número de mutações ao acaso em relação àquelas induzidas por um carcinógeno conhecido (1).

Por exemplo, no câncer de pâncreas foi encontrado que 77% das mutações eram devidas a erros aleatórios de cópia (replicação do DNA), 18% por fatores ambientais e 5% por hereditariedade, enquanto que para cânceres como próstata, osso e cérebro, mais de 95% das mutações foram devidas a erros aleatórios de cópia.

Para o adenocarcinoma de pulmão, os pesquisadores relataram que 65% das mutações foram devidas a fatores ambientais – tabagismo, provavelmente, e 35% para erros aleatórios de cópia.

Tomasetti e Vogelstein usaram vários modelos matemáticos para validar a hipótese da “má sorte”, tendo concluído que ações integradas de certos fatores endógenos em eventos biológicos afetam a correlação entre R e D (1). Eles levaram em consideração os dados de sequenciamento de DNA que revelaram as assinaturas gênicas (impressão digital do câncer) de tipos distintos de neoplasias e dados epidemiológicos de pacientes para estimar a fração de mutações causadas por fatores endógenos, fatores ambientais (externos) e ligados a família (hereditários).

Suas interpretações levaram em conta uma série de eventos e fatores que inclui (i) o número de genes-alvo mutados que levam à iniciação do câncer (oncogenes ou supressores de tumor); (ii) o número de mutações adicionais que são necessárias para a progressão do câncer; (iii) diferentes taxas de divisão celular, níveis de apoptose ou vigilância imunológica; (iv) exposição a agentes ambientais que aumentam a taxa de mutação ou taxa de divisão celular e a iniciação ou progressão do câncer.

Assim, eles concluíram que diferentes fatores podem interferir no risco de incidência (R), porém resultando na mesma taxa de incidência (D) e apenas alguns deles são “extrínsecos”, isto é, causados pelo meio ambiente, ou um fator hereditário (por exemplo, em mulheres portadoras da mutação no gene BRCA). Esses resultados foram confirmados analisando-se bases de dados oncogenômicas e epidemiológicas de pacientes com câncer em mais de 69 países (2).

A produção de uma nova célula depende da duplicação do DNA, que é promovida pelas DNA polimerases. Durante esse processo ocorrem vários tipos de mutações (troca de bases, inserções, deleções, etc.) que são corrigidas precisamente pelas enzimas de reparo de DNA. Porém qualquer falha nesse reparo pode destruir ou desabilitar genes. Se, por exemplo, o gene mutado estiver envolvido em um programa de checagem do ciclo celular (como exemplo, o gene da p53), poderá acontecer uma divisão anômala durante a mitose e a formação de clones de células-filhas defeituosas.

Essas mutantes, isto é, células iniciadoras de tumores com propriedades de células-tronco, se dividem raramente (por divisão assimétrica) e somente alguns clones se perpetuaram em um processo de seleção natural (teoria da evolução de Darwin). Em seguida, as sobreviventes perdem as características originais (antígenos de reconhecimento) e assim deixam de ser vigiadas pelas células da defesa imunológica (teoria da imunovigilância).

A teoria da “Má sorte” proposta por Tomasetti e Vogelstein vem recebendo dezenas de críticas tanto a favor quanto contra. Em um estudo similar realizado por outros autores (3) e com o mesmo grupo de pacientes, mostrou-se que as mutações randômicas (fatores endógenos) tinham um peso bem menor na incidência de certos cânceres (4).

Mutações randômicas (acidentais) são tecnicamente difíceis de serem preditas e/ou prevenidas, e por isso a hipótese de que câncer é causado por acúmulo desses tipos de erros (ou lesões) no DNA é chamada tumorogênese por “Má sorte” (“bad luck” tumorigenesis).

A teoria da “Má sorte” proposta por Tomasetti e Vogelstein vem recebendo dezenas de críticas tanto a favor quanto contra. Em um estudo similar realizado por outros autores (3) e com o mesmo grupo de pacientes, mostrou-se que as mutações randômicas (fatores endógenos) tinham um peso bem menor na incidência de certos cânceres (4).

A célula de origem de um câncer e a equação matemática para predizer sua evolução e prognóstico, por exemplo, tempo de sobrevida do paciente, seguramente variam de câncer para câncer (5). Talvez a mutação de “Má sorte” não seja o termo científico mais apropriado, nem mesmo “Flutuações térmicas” ou “Saltos quânticos”, como proposto (2).

Não acredito que as leis da mecânica relativista de Einstein poderiam estar por trás deste jogo de azar. O certo é que existe, sim, uma probabilidade de ganhar na loteria (isto é, ter um câncer) e esta aumenta dramaticamente com a idade avançada! Hoje temos que aceitar que o câncer é uma doença quase inevitável e exclusiva de organismos multicelulares de vida longa (nós humanos).

O câncer (a enfermidade mais temerosa) é causado por centenas de tipos diferentes de células malignas que evoluem com a diversidade de mutações que vão adquirindo ao longo do caminho.  Siddhartha Mukherjee (3), um oncologista indiano-americano que melhor escreveu a sua biografia, o proclamou como o imperador de todos os males.

Nesse livro incrível, ele contada histórias reais de dezenas de lendários cientistas, pacientes e bilionários que se engajaram política, jurídica e financeiramente, doando seus patrimônios e conhecimentos, na guerra contra o câncer. Muitos deles foram vencidos por este imperador.

June Goodfield, uma escritora britânica literalmente envolvida na luta contra o câncer, em um dos seus livros famosos, relata como a personalidade de um cientista pode impactar no seu trabalho (5). Ela é autora da frase “o câncer começa e termina com as pessoas […], os médicos tratam as doenças, mas eles também tratam pessoas, e essa precondição da existência profissional faz com que eles, na maioria das vezes, atuem nas duas direções ao mesmo tempo”. Não é a sorte nem o azar, mas o amparo de profissionais éticos e competentes no diagnóstico, cirurgia, tratamento e pesquisa que poderá nos livrar desse mal.

O câncer não é invisível, imprevisível, nem invencível. Quer apostar que investir na capacitação científico-tecnológica (uma medida preventiva implacável) pode salvar milhares de pessoas de vários tipos de câncer? Equipamentos, medicamentos e receitas não curam as doenças.

Indicações Bibliográficas

  • Tomasetti, C. & Vogelstein, B. “Variation in cancer risk among tissues can be explained by the number of stem cell divisions”. Science 347, 78–81, 2015.
  • Tomasetti, C. & Vogelstein, B. “Stem cell divisions, somatic mutations, cancer etiology, and cancer prevention”. Science 355, 1330-1334, 2017.
  • Wu, S., Powers, S., Zhu, W., Hannun, Y.A. “Substantial contribution of extrinsic risk factors to cancer development”. Nature, 529, 43-47, 2016.
  • Altrock, P.M., Liu, L. & Michor, F. “The mathematics of cancer: integrating quantitative models”. Nat Rev Cancer. 12:730-45, 2015.
  • Mukherjee, S. O imperador de todos os males: uma biografia do câncer. São Paulo, Companhia das Letras, 2012.
  • https://en.wikipedia.org/wiki/June_Goodfield

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