Aventuras e desventuras de ser (ou não ser) lido

Jurandir Renovato é jornalista e editor executivo da Revista USP

 02/06/2017 - Publicado há 7 anos     Atualizado: 15/03/2018 as 14:52
Jurandir Renovato – Foto: Marcos Santos/USP Imagens
Italo Calvino, em Se um viajante numa noite de inverno, converte o leitor em protagonista de seu romance mais famoso e original. Assim, o personagem que estabelece o enredo e a condução da narrativa é o mesmo que, do outro lado, mas não de modo passivo, usufrui dela em sua leitura. Como isso é possível?

Primeiro, devido à maestria e genialidade de Italo Calvino; segundo, porque ele leva às últimas consequências os recursos da metaliteratura, daquilo que Roland Barthes chamou de máscara que se aponta com o dedo; e, por último, porque ele adota uma postura de extremo respeito àquele que é a razão primeira de ser de qualquer texto escrito.

Talvez esse livro de Calvino, a sua obra-prima, seja a maior homenagem já prestada pela literatura à figura do leitor. Calvino deu um rosto e uma voz a ele, perscrutou-o intimamente no silêncio de seu ato de ler – o que certamente é o sonho de todo aquele que escreve, seja romancista, poeta, blogueiro ou resenhista.

Flagrar o leitor (o seu leitor) no momento mesmo de sua inadvertida leitura é de fato coisa rara de acontecer. Mas não impossível. Em proporções bem mais modestas – fique claro – tal se passou comigo em meados dos anos 90.

Eu estava dentro de um ônibus saindo da Cidade Universitária em direção a Pinheiros quando uma mulher, sentada ao meu lado, pôs os óculos e abriu a bolsa, de onde tirou uma desgastada folha de jornal. Após desdobrá-la cuidadosamente, eis que vejo brotar entre seus dedos um artigo que eu havia publicado duas semanas antes neste mesmo Jornal da USP, ainda nos tempos de sua exclusiva versão impressa.

(Era uma resenha do livro do Fernando Sabino sobre a Zélia Cardoso de Mello, ex-ministra da Fazenda do governo Collor. Um livro que, na época, causou bastante polêmica, até mais do que deveria. No artigo eu refletia em tom bem-humorado sobre as motivações do escritor mineiro para escrever tal livro, e usava para isso a correspondência que ele mantivera durante muitos anos com o modernista Mário de Andrade.)

Flagrar o leitor (o seu leitor) no momento mesmo de sua inadvertida leitura é de fato coisa rara de acontecer. Mas não impossível. Em proporções bem mais modestas – fique claro – tal se passou comigo em meados dos anos 90.

Pois bem. Para não chamar a atenção nem ser inconveniente com minha vizinha de banco, fiquei observando-a furtivamente pelo reflexo do vidro da janela, naquele sutil interstício entre a luz e a sombra, na confluência das imagens de dentro e de fora que quase se confundem numa coisa só; sorrateiramente espreitando as suas expressões, como se olhasse a rua.

Na mesma medida em que ela parecia estar gostando do texto, o que podia ser confirmado pelos risinhos e sinais de concordância com a cabeça, eu sentia aumentar em mim a vontade de me apresentar. Mas me contive. Esperei-a parar de ler, guardar a folha de volta na bolsa – agora de forma não tão cuidadosa –, levantar e sair do ônibus.

Até hoje fico imaginando que talvez ela tenha descido alguns pontos além do seu destino só para terminar a leitura do meu texto. Porém isso é pouco provável e de qualquer forma eu nunca vou saber. O certo é que eu, sim, fiz isso, atrasando dois ou três quarteirões, até vê-la desaparecer no torvelinho das seis da tarde da Teodoro Sampaio.

Sem dúvida, foi uma das maiores experiências da minha vida. Mas como tudo que é sólido se desmancha no ar, como diz o outro, não demorou muito para voltar à nua e crua realidade. E justamente quando julgava estar indo em direção ao melhor dos mundos possíveis.

O fato é que meu amigo Valter José, na época doutorando em filosofia na FFLCH, havia me alertado sobre sempre ter um texto meu fixado no mural da pós-graduação das Letras. “Parece que você tá formando um fã-clube, hein, Renovato?!”, ele me provocava naquele seu jeito entre brincalhão e malicioso. E antes que eu começasse a vislumbrar um grupo de jovens estudantes histéricas empunhando cartazes com minha foto e cadernos para colher o meu autógrafo – antes disso, esbocei o que seria um gesto blasé e mudei de assunto.

Algum tempo depois, tendo ido fazer uma pesquisa iconográfica na biblioteca da Faculdade de Letras para uma das edições da Revista USP, reparei num senhor calvo e com um rosto estranhamente familiar sentado numa das mesas. Enquanto conversava com a bibliotecária, esse sujeito levantou-se e veio na minha direção. Reconheci-o de imediato. Era o seu Carlos, meu professor de português da oitava série!

Ele contou que após se aposentar resolvera fazer mestrado. Disse também que costumava ler as coisas que eu escrevia no jornal; e pareceu bastante orgulhoso disso. Matei a charada na hora: ali estava o “meu fã-clube” bem diante do meu nariz!

Não obstante a alegria de rever um antigo e querido mestre, um pensamento de certo modo mesquinho me impedia de desfrutar completamente daquele agradável momento de reencontro. Eu me sentia desapontado, essa é a verdade. Afinal, o entusiasmo em relação a um texto nosso vindo da parte de um ex-professor de português equivalia, em termos de credibilidade e isenção, à opinião da mãe da gente sobre o quanto somos lindos e inteligentes.

O fato é que meu amigo Valter José, na época doutorando em filosofia na FFLCH, havia me alertado sobre sempre ter um texto meu fixado no mural da pós-graduação das Letras.

Aquilo foi um golpe daqueles, confesso, na minha pretensa vaidade de resenhista superstar. Mas nada comparado ao que ainda estava por vir, quando certa vez, após ter acabado de chegar ao antigo prédio da Coordenadoria de Atividades Culturais da USP, precisei, antes de subir até a sala da redação, dar uma passadinha no banheiro, que ficava estrategicamente atrás do elevador do térreo.

Foi um péssimo negócio. Mal atravessei a porta pude ver, no cesto ao lado do vaso sanitário, uma folha de jornal amarrotada e “usada”, de onde distinguia-se parcialmente o título de uma resenha minha sobre o Estorvo, do Chico Buarque, cuja foto, diga-se, também se encontrava bastante prejudicada.

Será que o usuário do banheiro, fã do cantor então recém-estreado nas letras, se revoltara com as ressalvas que eu fazia ao primeiro romance do seu ídolo? Ou quem sabe pegara o jornal – disponível na época num escaninho junto ao elevador – já mal-intencionado e, nesse caso, nem se dera conta do que levava, muito menos o trabalho de escolher o conteúdo da matéria para a sua necessidade.

Esta última hipótese, mais plausível no contexto de um leitor, para todos os efeitos, tão pouco exigente, deu-me certo alento diante daquela situação. E enquanto eu permanecia lá, vertendo a água atrigada dos joelhos e contemplando horrorizado a degradação escatológica do meu artigo – que de fato nem era lá aquelas coisas –, imaginei um tempo futuro, igual a este atual, em que os textos eletrônicos, mesmo sendo despretensiosas resenhas, jamais teriam tão ignóbil e triste fim.


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