A ciência pela história, episódio 5 – Uma Terra redonda na Antiguidade

Por Gildo Magalhães, professor sênior do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP

 Publicado: 24/07/2024

Os antigos pensavam que nosso planeta é plano?

Vamos responder reportando-nos ao alto grau de conhecimento atingido na Grécia Antiga.

Em seu auge, o sofisticado e privilegiado ambiente cultural grego foi capaz de produzir grande literatura, que inclui desde as antigas epopeias homéricas até uma rica poesia, além da história, com destaque para Hesíodo e Xenofonte, e o magnífico teatro, do qual são representativas as peças de Eurípedes, Sófocles, Ésquilo. Nesse terreno fértil surgiram os trabalhos filosóficos legados pelos pré-socráticos, a que se seguiram as obras de Sócrates, Platão e Aristóteles, que estão na base da civilização ocidental.

O conhecimento dos gregos avançou rapidamente também em muitas áreas científicas, como exemplificado pelos avanços durante o século 3 a. C. Nesta época surgiram grandes obras na matemática, como Os Elementos, compilação feita por Euclides de Alexandria, As Cônicas, de Apolônio de Perga, na física com Arquimedes e seus grandes trabalhos, tais como Sobre os Corpos Flutuantes, fundamental para a engenharia naval, ou ainda na medicina com o Corpo Hipocrático, coleção coletiva (séculos 5 a 3 a.C.), associada a Hipócrates de Cós.

Por outro lado, historiadores da ciência consideram com reservas a designação de “milagre grego” para esses desenvolvimentos, preferindo procurar as causas prováveis desse florescimento. Neste sentido, deve-se acentuar que o conhecimento científico nunca é uma obra de uns poucos indivíduos, por mais dotados que sejam, mas uma produção coletiva, às vezes de muitos séculos de duração. Os gregos absorveram conhecimentos importantes de muitas gerações anteriores da Caldeia e Babilônia, da África (principalmente por meio do Egito), e possivelmente até do Extremo Oriente, graças às Rotas da Seda, como vieram a se chamar caminhos milenares onde transitavam mercadorias e ideias, desde a China, passando pela Ásia Central e Ásia Menor, ou pela Índia e Arábia, até chegarem ao Mediterrâneo.

A efervescência cultural grega se deve ainda por haver na Grécia Antiga uma sociedade rica pelo comércio, onde alguns membros da classe alta dispunham da força de trabalho escravo e, assim, contavam com tempo livre suficiente para se engajarem em atividades intelectuais.

Outra facilidade possivelmente relacionada com os avanços gregos em várias áreas foi a transformação de uma civilização de transmissão oral de ideias para uma civilização escrita, fenômeno que se acentuou a partir do século 5 a.C. A escrita deixou de ser usada apenas para registro de transações comerciais e de alguns fatos históricos e ideias religiosas, porque foi descoberto o princípio do alfabeto. Muitas civilizações no Mediterrâneo, inclusive os fenícios, e na Ásia Menor usavam silabários (em que a unidade de escrita é a sílaba composta geralmente por consoante mais vogal, sem separação), ou escritas ideográficas (como os hieróglifos egípcios), mas os gregos passaram a usar no século 5 a.C. os elementos sonoros em que se distinguem e combinam separadamente consoantes e vogais, diminuindo sensivelmente o número de símbolos, assim como o tempo de aprendizado da leitura e escrita, facilitando enormemente a divulgação de ideias.

Voltando à questão inicial, do formato da Terra, sabemos que há pelo menos uns 2 mil e 500 anos era veiculada na Grécia a ideia de que nosso planeta é esférico, pois Pitágoras e Parmênides o afirmaram, por volta dessa época.

Poucos séculos depois, um fato notável a esse respeito foi que Eratóstenes de Cirene (276-194 a.C.), matemático amigo de Arquimedes, usou a teoria geométrica disponível no século 3 a.C. para medir a circunferência da Terra.

Esta façanha foi realizada por volta de 230 a.C. e merece uma explicação mais pormenorizada. Eratóstenes era um erudito versado em matemática, e ocupava o posto de bibliotecário-chefe na grande coleção de escritos da Biblioteca em Alexandria, no Egito, que era desde as conquistas de Alexandre Magno uma parte da civilização helênica. Ele sabia que na cidade de Siena (atual Assuã), num determinado dia do ano, o Sol ao meio-dia ilumina sem sombra o centro do fundo de um poço vertical – ou seja, o Sol, o poço e o centro da Terra estão alinhados. Um auxiliar dele verificou no mesmo dia e horário que um obelisco, vertical como o poço e localizado na cidade de Alexandria, ao norte de Siena, lançava uma sombra, pela qual se podia medir o ângulo entre o obelisco e os raios solares. A figura abaixo (exagerada, para efeitos didáticos) representa esquematicamente a experiência.

Com uma boa aproximação, há dois triângulos retângulos semelhantes, um (hachurado na figura) definido pela ponta do obelisco, pela sua base e pela projeção da sombra da ponta. O outro é formado pelo centro da Terra, pela base do obelisco e pela abertura superior do poço em Siena.

Triângulos semelhantes têm ângulos iguais. Como o ângulo formado pela sombra no alto do obelisco foi medido nessa ocasião, resultando um valor de 7,2 graus, o ângulo que lhe é igual com vértice no centro da Terra é cinquenta vezes menor do que a circunferência toda (360°). Não se sabe exatamente converter a medida grega usada para distâncias, o estádio, mas pode-se estimar que essa distância entre Siena e Alexandria era algo como 802 km. Eratóstenes concluiu então que essa distância deveria ser igual a 1/50 da circunferência completa do planeta, que resultaria num valor 50 vezes maior, ou 40.100 km.

São várias as hipóteses básicas que foram assumidas por Eratóstenes nessa medição, todas aproximações bastante boas para as finalidades em questão:

• primeira, que Siena e Alexandria estão no mesmo meridiano terrestre – na verdade Alexandria está a três graus mais para oeste;
• segunda, que os raios de luz são paralelos – não o são, pois o Sol é uma esfera e não um plano, mas pelo seu tamanho relativo e distância da Terra, a correção é pequena;
• uma terceira suposição foi que a Terra é uma esfera perfeita – sabemos hoje que o planeta é levemente achatado nos polos;
• os triângulos têm uma base curvilínea e não retilínea, devido exatamente à curvatura da Terra, efeito certamente muito mais pronunciado no triângulo maior, cujo vértice está no centro da Terra.

O resultado do cálculo de Eratóstenes foi extraordinário, pois a imprecisão total dessa medição foi relativamente muito pequena. Usando unidades métricas atuais, o erro pode ter sido da ordem de apenas oitenta quilômetros, para um valor médio hoje avaliado como sendo perto de quarenta mil e vinte e três quilômetros.

Além disso, o processo de conhecimento da realidade do tamanho terrestre foi resultado de uma pesquisa inicialmente apenas mental, onde a utilização dos sentidos foi um ponto de apoio. De fato, só mais de dois milênios depois o homem teria condições de, com a conquista do espaço e graças ao uso de foguetes e satélites artificiais, usar os sentidos para “ver” com os olhos, ou por meio de aparelhos, o que Eratóstenes “viu” com a mente, a redondeza da Terra, o que pode certamente ser considerado uma aplicação da teoria platônica das ideias, que privilegia o conhecimento mental sobre o sensorial.

Além de considerar a esfericidade da Terra, houve a concepção de que ela gira em torno do Sol. Depois do cálculo de Eratóstenes, Aristarco de Samos foi um dos que conceberam um sistema heliocêntrico, e isto 18 séculos antes de Copérnico. Aristarco escreveu no século 3 a.C. o tratado denominado Sobre as distâncias entre o Sol, a Terra e a Lua, de grande originalidade, pois avaliou os respectivos diâmetros e as distâncias relativas, com bons resultados para a época, sem conseguir a precisão de Eratóstenes, mas por métodos essencialmente corretos. Para isso, utilizou observações visuais dos tamanhos das sombras da Terra projetadas em eclipses e triangulações – mas não entraremos em detalhes aqui.

Respondida a questão inicial proposta no início deste artigo, surge outra pergunta: a humanidade depois se esqueceu desses avanços no conhecimento? É interessante que o biólogo Stephen Jay Gould se interessou por esse problema, visto da perspectiva de muitos livros didáticos norte-americanos que asseveravam que durante a Idade Média, a Igreja Católica considerava a Terra plana. Em sua pesquisa, O nascimento tardio de uma Terra plana (em Dinossauro no Palheiro), Gould fez duas descobertas: primeiramente, que na época medieval diversas personalidades cultas da Igreja afirmavam o contrário, que a Terra era esférica; em segundo lugar, a afirmação falsa foi plantada deliberadamente na segunda metade do século 19 por pessoas antirreligiosas em livros que queriam caracterizar uma luta entre ciência progressista e religião retrógrada. Com o tempo, os livros didáticos apenas repetiram as afirmações sem citar a fonte, o que, como se sabe das táticas empregadas em fake news, tem chance de sucesso, infelizmente.

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