Igualdade de gênero: por que precisamos de cidades cuidadoras?

Por Kelly Komatsu Agopyan, pós-doutoranda do Centro de Síntese USP Cidades Globais do Instituto de Estudos Avançados da USP

 Publicado: 17/07/2024
Kelly Komatsu Agopyan – Foto: Arquivo pessoal
A tendência de envelhecimento da população mundial e a realidade das mudanças climáticas e seus efeitos ainda mais profundos na vida das mulheres têm dado visibilidade à uma questão que não é nova: a desigualdade de gênero no acesso e na provisão de cuidados.

A realização de atividades de cuidados – aqui considerando o cuidado tanto com outras pessoas, como a realização de atividades domésticas essenciais – está no cerne da manutenção e reprodução da vida cotidiana. Ainda assim, a provisão de cuidado é um assunto relegado apenas ao âmbito privado, sendo de responsabilidade praticamente compulsória e exclusiva de meninas e mulheres, reflexo da divisão sexual do trabalho que sustenta as sociedades patriarcais capitalistas. No entanto, é necessário lembrar que todas as pessoas, sem exceção, ainda que em graus diferentes ao longo de suas vidas, demandarão diferentes tipos de cuidados, e que esses deveriam então ser tratados como uma corresponsabilidade pública, coletiva e social.

A feminização do cuidado é uma realidade não só no Brasil como internacionalmente. Segundo dados compilados de pesquisas nacionais sobre uso do tempo, sistematizadas pela Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), em 16 países analisados da região, o tempo despendido para realização de trabalho não remunerado por mulheres é sempre maior do que o de homens, podendo, inclusive, ultrapassar o dobro de horas – esses são os casos de Chile, Colômbia, Equador e Peru, apenas para citar alguns exemplos. O México é o país latino-americano em que as mulheres despendem maior número de horas realizando trabalho não remunerado de cuidado: uma média de 42,8 horas semanais. Já no Brasil, dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD-Contínua) de 2022, divulgados pelo IBGE, revelam que mulheres ocupadas (inseridas no mercado de trabalho) dedicam uma média de 17,8 horas semanais para realização de afazeres domésticos e de cuidados, em comparação a 11 horas dos homens.

O cálculo final é simples: quanto mais tempo se despende realizando atividades de cuidados, menos tempo sobra para o (tão necessário) descanso e para atividades que contribuem com o próprio desenvolvimento pessoal e profissional. Assim, a estrutura da desigualdade de gênero se sustenta e se reproduz, em um ciclo difícil de ser quebrado ao longo das gerações.

Mas o que essa discussão tem a ver com a vida nas cidades? Tudo. As políticas urbanas não são neutras em relação às construções de gênero, e, na verdade, fazem parte desse sistema, reproduzindo e aprofundando essas desigualdades. A organização territorial das cidades, sobretudo na América Latina, invisibiliza e dificulta a realização das necessidades cotidianas do cuidado.

Isso fica evidente, por exemplo, quando o planejamento urbano privilegia deslocamentos pendulares casa-trabalho (por meio de grandes corredores e eixos de transporte público e/ou individual motorizados), não dando condições de mobilidade adequadas para realização de deslocamentos fragmentados no miolo dos bairros, que são, muitas vezes, conectados a tarefas domésticas e de cuidado (ida à creche, à escola, ao mercado etc.).

Além disso, a ausência de uma infraestrutura de serviços capilarizada pelos bairros, que atenda as diferentes demandas de cuidado de forma integrada também impacta diretamente a qualidade de vida das pessoas que cuidam – majoritariamente mulheres – e das que necessitam de cuidados – como crianças, idosos, pessoas com deficiência, entre outras.

A brecha gerada pela ausência de serviços públicos de cuidado gratuitos e acessíveis onera então as famílias. Nesse sentido, a oferta privada dos serviços de cuidado acaba sendo a alternativa disponível apenas para as famílias que conseguem pagar, demonstrando também que o direito ao cuidado tem uma dimensão explícita de classe. Ao mesmo tempo, o trabalho de cuidado (mal) remunerado, continua sendo realizado também por mulheres, e no Brasil, sobretudo, por mulheres negras: segundo Nota Informativa da Secretaria Nacional da Política de Cuidados e Família (SNCF), com dados do IBGE (2019), 45% dos postos de trabalho remunerado de cuidados eram ocupados por mulheres negras (em comparação a 31% de mulheres brancas). Uma pergunta então deve ser feita a partir desses dados: quem cuida das mulheres negras e de suas famílias?

Quando o cuidado não pode ser pago, muitas famílias acabam recorrendo às redes de apoio conformadas no interior das próprias comunidades a partir da necessidade coletiva compartilhada, e que são, muitas vezes, também protagonizadas por mulheres. Aqui fica então evidente a necessária análise interseccional entre território, raça, gênero e classe para formular políticas públicas mais coerentes com as realidades e necessidades locais, sobretudo, dos grupos em situação de vulnerabilidade.

Assim, precisamos falar da centralidade do cuidado na organização das cidades, não apenas porque esse deve ser um direito garantido à todas as pessoas, mas porque diz respeito a atividades essenciais que sustentam a vida urbana e o próprio desenvolvimento das cidades. Enquanto o cuidado for uma atividade compulsória e exclusiva das mulheres (negras), e enquanto o acesso ao cuidado for privilégio apenas de quem pode pagar, nunca alcançaremos cidades justas e democráticas e a plena garantia do direito à cidade a todas as pessoas. Colocar o cuidado no centro da agenda pública local é urgente.

Mais do que só um aparente slogan político, precisamos de cidades cuidadoras, tanto para começar a reparar as profundas desigualdades históricas de gênero, como para melhor nos prepararmos para os diversos desafios demográficos e ambientais que já estão postos para as próximas décadas.

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