Kasi, prática livre e popular do futebol, possui significado político e social

Especialistas contam que, no Brasil, algumas das mais significativas manifestações esportivas e corporais são a capoeira, o futebol de várzea e a corrida de tora indígenas

 Publicado: 22/07/2024
Por
Final de um campeonato kasi. Partida recreativa de futebol, a pelada é a instância mais amadora do futebol – Foto: Reprodução/Disk’Cast no Youtube
Logo da Rádio USP

As Olimpíadas são o ápice do mundo esportivo, já que diversos esportes de todo o globo são disputados em um único evento, importante não só pelo seu entretenimento, como, principalmente, pelo seu caráter cultural e social que pode ser analisado em qualquer esporte. Apesar de não estar nos Jogos Olímpicos, o Kasi Football, da África do Sul, é um ótimo exemplo de movimento esportivo de ampla importância para uma comunidade, transmitindo grande representação ao povo negro do país.

Marco Bettine, professor da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da Universidade de São Paulo (USP), explica que o kasi é a forma mais popular do futebol informal, que surgiu com a classe trabalhadora negra de baixa renda no país africano, principalmente no período do Apartheid. Nessa época, houve uma migração de trabalho forçado de pessoas negras para áreas específicas nas capitais, em razão da industrialização, mas também houve uma migração forçada para o trabalho no campo, principalmente para as vinícolas sul-africanas.

Marco Bettine – Foto: Arquivo Pessoal

Com organizações autônomas — normalmente, envolvendo apostas — e feito em campos em propriedades privadas longe das rodovias, o jogo do kasi não tem um local definido, gerando muitas vezes um confronto entre os proprietários das áreas e esse campo de prática. “Somente aqueles que detêm um conhecimento do kasi vão saber onde encontrar esses campos”, explica Bettine, baseado em estudos etnográficos feitos nas regiões.

De acordo com o professor, o kasi criou um significado político e social para a prática livre e sustenta uma relação social das comunidades que sofreram com processos de sociabilidade no período do Apartheid. Inclusive, ainda hoje há uma repressão, já que diversos campos do Kasi são simplesmente destruídos ou substituídos por campos de rugby, esporte mais comum entre a população branca do país. “Em termos de cultura, ele serviu para lidar com esse processo de urbanização, de deslocamento forçado, e é uma forma do povo da África do Sul recuperar a ideia de um tempo livre, de um espaço de lazer sem ser aquele organizado pela estrutura formal. Ele tem uma robustez cultural, mostrando as desigualdades e as formas de sustentar a prática”, afirma.

Também como forma de resistência política, o kasi já serviu até para encontros da organização da luta contra o Apartheid, que, em diversos grupos, utilizava os jogos de forma estratégica para se reunir e conversar. Bettine explica que isso era feito como uma forma de organização da luta contra o sistema, já que os encontros formais foram proibidos durante esse período.

Características e amplitude do kasi

A autonomia regional dessa prática, com a força das localidades, é um aspecto ligado à própria palavra kasi, que vem da ideia de localização. Assim, está completamente ligada à sua origem de segregação dos centros urbanos e tem um impacto significativo nas zonas rurais em que se encontram, já que cada local tem elementos próprios com diferentes regras e formas de jogar o kasi.

Um exemplo disso é o MAP Games, também chamado de Kasi World Cup, campeonato criado e organizado pelo lendário jogador dos Bafana Bafana — como é conhecida a seleção sul-africana de futebol — Maimane Phiri desde 2001 no município de Alexandra, na região metropolitana de Joanesburgo. “O próprio Maimane fala da dificuldade no começo de criar regras claras para todo mundo jogar. Lógico, depois de 23 anos do evento, essa não é mais uma questão. Mas, nas palavras do antropólogo Roberto DaMatta, ‘o kasi é um jogo sério, que dramatiza uma situação do povo sul-africano’”, comenta o professor.

Por conta desse evento, a forma de jogar do kasi foi muito filmada, e suas características de exacerbação do drible, com uma habilidade e jogadas ultrajantes que fazem parte do ethos de jogar, síntese dos costumes de um povo que conforma seu caráter e identidade coletiva. Essa característica, considerada desnecessária pelo europeu ocidental, é também uma forma de resistência à ocidentalização e ao eurocentrismo do futebol, já que há até uma preocupação, dentro do movimento, de que os jogos nacionais oficiais estão perdendo essa alma do kasi, além da preocupação sobre os patrocínios em seus jogos, que podem fingir se importar com o espaço social para a prática livre, mas transformá-lo em um celeiro de jogadores, para a mercantilização esportiva, ao longo do tempo.

Bettine também comenta que existem muitos relatos de que os limites do kasi já extrapolaram a África do Sul, demonstrando um processo de africanização da sua forma de jogar e do seu ethos. Em diversos países da África Subsaariana, como Angola e Moçambique, o estilo de jogo do movimento foi incorporado, ressignificando alguns aspectos como termos e formatos para se adaptar às suas próprias localidades, característica marcante do kasi.

Outras manifestações esportivas e corporais

Sobre movimentos esportivos ou pré-esportivos ao redor do mundo que trazem esse mesmo impacto, Bettine cita o haka, dança típica do povo Maori, da Nova Zelândia, e muito utilizada no rugby local. Incorporado com os All Blacks — como é conhecida a seleção neozelandesa de rugby, uma das melhores do mundo no esporte —, caminhou junto com um movimento de recuperação da língua originária do país e de outras práticas perdidas pelo processo de colonização britânico, feito principalmente em escolas e universidades.

“O haka é apenas um movimento que transmite essa cultura dos povos originários da Nova Zelândia, mas para que ele surja, houve um movimento de valorização e proteção desses grupos. Há uma estrutura interna de valorização dos povos nativos e preservação muito forte lá. São formas de resistência política, foi todo um processo de luta desses nativos de preservação da sua cultura e de colocar as suas demandas no debate público político”, acrescenta.

Conforme o professor, isso demonstra a força política desses movimentos sociais que utilizam das práticas corporais como mecanismo de resistência política e de sociabilidade, implementando as demandas de grupos sociais oprimidos e povos subjugados do mundo no plano de ação política. Com um exemplo brasileiro, Bettine lembra a corrida de tora, atividade tradicional indígena realizada por diferentes etnias no País, como os povos Xerente (TO), Gavião (PA), Kanela (MA) e Xavante (MT). Os jogos serviam também como espaços de resistência e de criação de laços culturais, já que os líderes de várias tribos se reuniam para indicar as suas demandas locais.

Reinaldo Tadeu Boscolo Pacheco – Foto: CV Lattes

Reinaldo Pacheco, também professor da EACH-USP, comenta que a capoeira e o futebol de várzea são, provavelmente, as duas manifestações mais significativas e importantes do Brasil. Originada na cidade de São Paulo — por ser uma cidade entre rios —, o futebol de várzea ocupou espaços livres urbanos aos arredores desses rios e teve uma importância fundamental no crescimento da metrópole. Ainda com uma reminiscência histórica do futebol de várzea na periferia da cidade, ele representa uma manifestação de resistência esportiva na metrópole, que foi retirando esses espaços de lazer da população, conta o especialista.

Sobre a capoeira, ele aborda: “Ela nasce em um contexto de adaptação da corporeidade afro-brasileira, há uma série de circunstâncias sociais que envolviam um tensionamento muito grande da perspectiva de libertação da comunidade negra. A raiz da capoeira antecede a própria abolição da escravatura e tem um caráter de resistência e de identidade cultural muito grande. Há uma tentativa de esportivização, até de colocá-la como uma arte marcial que possa ser disputada nas Olimpíadas, que mesmo dentro do movimento da capoeira há resistência com relação a isso, por achar que a capoeira é muito mais do que esporte”.

Símbolo de uma identidade e resistência cultural, vários grupos estão retomando inclusive a tradição da capoeira Angola, a fim de demarcar um campo de ação político e representar suas territorialidades, principalmente das periferias. “Em todos os países e culturas você vai ter manifestações assim. Muitas das formas de manifestação da cultura corporal nasceram com esse aspecto inclusive de resistência cultural”, finaliza Pacheco.

*Estagiário sob supervisão de Marcia Avanza e Cinderela Caldeira


Jornal da USP no Ar 
Jornal da USP no Ar no ar veiculado pela Rede USP de Rádio, de segunda a sexta-feira: 1ª edição das 7h30 às 9h, com apresentação de Roxane Ré, e demais edições às 14h, 15h, 16h40 e às 18h. Em Ribeirão Preto, a edição regional vai ao ar das 12 às 12h30, com apresentação de Mel Vieira e Ferraz Junior. Você pode sintonizar a Rádio USP em São Paulo FM 93.7, em Ribeirão Preto FM 107.9, pela internet em www.jornal.usp.br ou pelo aplicativo do Jornal da USP no celular. 

 


Política de uso 
A reprodução de matérias e fotografias é livre mediante a citação do Jornal da USP e do autor. No caso dos arquivos de áudio, deverão constar dos créditos a Rádio USP e, em sendo explicitados, os autores. Para uso de arquivos de vídeo, esses créditos deverão mencionar a TV USP e, caso estejam explicitados, os autores. Fotos devem ser creditadas como USP Imagens e o nome do fotógrafo.