O acordo comercial entre o Mercosul e a União Europeia

Por Paulo Feldmann, professor da Faculdade de Economia, Administração, Contabilidade e Atuária (FEA) da USP

 26/09/2023 - Publicado há 9 meses

O acordo comercial que está sendo discutido entre o Mercosul e a União Europeia cria uma ilusão perigosa para nós, sul-americanos. À primeira vista pode parecer que passaremos a ter acesso a um dos mais ricos e importantes mercados comerciais do mundo. Mas não é bem assim.

Hoje o comercio entre as duas regiões já se caracteriza pelo fato de nós, sul-americanos, praticamente só vendermos aos europeus commodities agrícolas e minerais, e por comprarmos dos mesmos basicamente produtos industriais manufaturados. No caso do Brasil, por exemplo, metade dos produtos exportados para o bloco europeu são primários, com destaque para óleos brutos, café e soja, e a outra metade tem maior valor agregado, como o farelo de soja. Em troca, o Brasil importa da Europa medicamentos, partes de veículos, máquinas e produtos de alta tecnologia.

Importante destacar que, claramente, hoje no mundo as nações efetivamente avançadas são aquelas cujas exportações são constituídas por produtos com alto conteúdo tecnológico, o que caracteriza, por exemplo, Estados Unidos, China, Alemanha, Japão etc. Enquanto as nações pobres são aquelas que, quando conseguem exportar, o fazem através de seus produtos agrícolas ou minerais, ou seja, commodities.

E, na verdad,e esse acordo já foi assinado em 2019. Aconteceu no início do governo Bolsonaro, mas em seguida os europeus se recusaram a colocá-lo em prática, alegando entre outras razões o forte desmatamento que vinha acontecendo na Amazônia. No texto, previa-se que os produtos europeus teriam tarifas de importação reduzidas no Mercosul (principalmente nos setores industrial e alimentício) e que as exportações sul-americanas teriam preferência na União Europeia.

No entanto, em março deste ano, com a mudança de governo no Brasil, a União Europeia enviou um documento que reabriu as negociações e passou a exigir compromissos ambientais para desbloquear o acordo de livre comércio entre as nações. Entre estes novos compromissos está a exigência de que todo produto sul-americano exportado para a Europa seja inspecionado e tenha uma espécie de selo verde. Isto não constava do acordo assinado em 2019 e claramente foi incluído pelo agronegócio europeu, principalmente francês. A questão é que, de forma geral, o agronegócio brasileiro é mais produtivo, e isto gerou um temor principalmente entre os empresários franceses.

Além das questões ambientais, outro ponto com o qual devemos nos preocupar é que a nova versão do acordo prevê ainda maiores favorecimentos aos produtos industriais produzidos pelos europeus, o que vai acelerar o desmonte da já quase totalmente destruída indústria manufatureira da América do Sul. Lembrando que o próprio Banco Mundial menciona em relatório recente que o Brasil foi o campeão mundial da desindustrialização nos últimos 30 anos e a Argentina, a vice-campeã.

Finalmente outro ponto extremamente polêmico do novo acordo se refere às compras governamentais. Ele garante “tratamento doméstico” a fornecedores estrangeiros europeus e livre participação em licitações públicas. Ou seja, um dos únicos mercados que tem uma mínima proteção para a pequena empresa brasileira corre o risco de ser abolido.

Além das ilusões, o acordo nos levará a algumas armadilhas. Uma delas em relação ao capital e investimento externo. A Europa hoje investe pesadamente na América do Sul. Há inúmeras empresas holandesas, francesas, alemãs e suíças, principalmente no Brasil. Aqui elas geram bons empregos e, muitas vezes, transferem tecnologia. Com o novo acordo, isto diminuirá drasticamente, pois o nosso mercado passará a ser abastecido por produtos que vamos importar do Velho Continente. Que vantagem as empresas europeias terão em vir para cá, se seus produtos aqui chegarão de qualquer forma, via importação?

A nós, sul-americanos, resta muito pouca coisa no jogo econômico mundial. Uma delas é o nosso mercado interno. Vale a pena abrir mão dele e aumentar ainda mais a nossa dependência dos altos e baixos no preço das commodities no mercado mundial?

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