Sentença para laqueadura obrigatória de mulher negra revela viés racial e social na Justiça brasileira

Caso aconteceu na cidade de Mococa, no interior do Estado de São Paulo, e a reescrita da sentença, sob perspectiva jurídico-feminista, revela um Judiciário com repertório que remete ao colonialismo

 31/08/2023 - Publicado há 11 meses
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O Poder Judiciário possui um histórico de ser visto como inacessível, ou acessível apenas a uma elite – Foto: Freepik
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Sentença em primeira instância autorizando laqueadura tubária compulsória de mulher negra, pobre e periférica, a partir de pedido do Ministério Público do Estado de São Paulo, é o tema do episódio desta semana da série Mulheres e Justiça. A convidada da professora Fabiana Severi para falar sobre a reescrita em perspectiva jurídico-feminista desse caso é a professora do Departamento de Ciências Jurídicas da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) Luciana Costa Fernandes, que trabalhou no projeto com a pesquisadora Marcia Nina Bernardes, doutora em Direito pela Universidade de Nova York e professora da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ).

Escolha do tema

Sobre a escolha dessa sentença para ser reescrita, a professora Luciana conta que foi pela gravidade da violência praticada, além de dar visibilidade para práticas como essa, de pedido de laqueadura compulsória. O caso é de maio de 2017, quando a Promotoria do Estado de São Paulo ajuizou uma ação civil pública, com pedido de tutela antecipada, requerendo que o município de Mococa, cidade do interior, providenciasse laqueadura tubária de uma mulher negra, pobre e periférica, sem seu consentimento.

Luciana Costa Fernandes – Arquivo Pessoal

A mulher, usuária de programas de assistência social, havia relatado diversas vezes estar em condições de violência doméstica familiar aos poderes públicos, sem que nada fosse ofertado. “Embora ela tivesse indicado, em uma visita da Assistência Social do Município, cogitar fazer o procedimento, ela nunca compareceu aos programas ou indicou a vontade de fazê-lo. O mesmo promotor desse caso já havia feito outros três pedidos de laqueadura compulsória, envolvendo mulheres negras, pobres e das regiões periféricas do município.”

A pesquisadora diz que o caso também foi escolhido a partir de uma problematização de como as epistemologias feministas hegemônicas têm refletido sobre a condição da maternidade, deixando escapar que essa inteligibilidade de um corpo feminino como potencialmente maternal é um privilégio branco.

Reescrita feminista

Para a reescrita, as pesquisadoras partiram da reflexão de que os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, especialmente as questões relacionadas à maternidade, fazem parte da trajetória histórica de pesquisa e de reivindicações dos feminismos hegemônicos, que são essencialmente os feminismos brancos, europeus, burgueses e héterocentrados. Mas são os femininos negros e decoloniais que vêm denunciando corpos que sequer são entendidos como humanos, já que ocupam a zona do não ser, não disputam demandas meramente liberais dessa agenda. “Então, parte dos dispositivos das colonialidades de gênero é extirpar mulheres negras da possibilidade de serem mães, condição incompatível com a histórica denúncia do lugar compulsório da maternidade para mulheres brancas, ricas e dos países do Norte.”

Ainda segundo a pesquisadora, esse caso revela que a marcação de raça, classe e território faz com que a não-maternagem é que seja uma compulsoriedade. “Assim, reescrevemos o acordão, que havia convertido a decisão de primeira instância, tornando ilegal a possibilidade do procedimento, mas que havia sido escrito em termos jurídicos superliberais, com repertório dessas reflexões que pensamos compor uma reescrita feminista.”

Resultados

Sobre os resultados, a pesquisadora diz que o sistema de Justiça reproduz, desde a sua origem, as estruturas de dominação na nossa sociedade. Assim, a partir dessa origem, no império colonial, as primeiras estruturas burocráticas foram implantadas pela Coroa portuguesa e serviram como mecanismo para a perpetuação do colonialismo das branquitudes coloniais. Nessa época, diz Luciana, as faculdades de Direito e as elites brancas, letradas a partir desse repertório do Direito, passaram a compor os espaços que hoje temos no Judiciário, aprendendo a reproduzir e atualizando teorias que legitimavam, dentre outras coisas, o racismo científico, que foi incorporado como teoria jurídica. “Então, nesse caso, há um discurso pela saúde e igualdade, que aparece no pedido da laqueadura, mas, na verdade, reproduz a estrutura do sexismo e do racismo, que remontam a essa origem do Judiciário.”

Para Luciana, parte da dinâmica desse processo passa, até hoje, pelo modo como decisões são escritas e atualizam esse vínculo histórico, com toda uma aparência de neutralidade, de igualdade, que ofusca as inscrições políticas e os pactos, ainda hoje, da branquitude dos seus atores. “Reescrever uma decisão que denunciou a ilegalidade da laqueadura compulsória, em Estado democrático, mas que mantinha esse repertório do colonialismo jurídico, que enunciava um fator de igualdade e de saúde, que ainda referendava esse racismo, essa divisão da esfera do não ser, parece ser potente para a reflexão sobre como produzir rupturas, a partir do próprio Direito, de uma reinscrição das nossas teorias, que pode ser feita pelos métodos feministas.”

A série Mulheres e Justiça faz parte do projeto Reescrevendo Decisões Judiciais em Perspectivas Femininas, uma rede colaborativa de acadêmicas e juristas brasileiras de todas as regiões do País que se presta a reescrever decisões judiciais a partir de um olhar feminista.

A série Mulheres e Justiça tem produção e apresentação da professora Fabiana Severi, da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto (FDRP) da USP, e das jornalistas Rosemeire Talamone e Cinderela Caldeira -
Apoio:acadêmicas Juliana Cristina Barbosa Silveira e Sarah Beatriz Mota dos Santos-FDRP
Apresentação, toda quinta-feira no Jornal da USP no ar 1ª edição, às 7h30, com reapresentação às 15h, na Rádio USP São Paulo 93,7Mhz e na Rádio USP Ribeirão Preto 107,9Mhz, a partir das 12h, ou pelo site www.jornal.usp.br


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