Em 1975, a ONU reuniu mulheres de diversos países na Cidade do México para avaliar a condição feminina. Era o Ano Internacional da Mulher. “O resultado foi surpreendente: em todos os países, independentemente de seu grau de desenvolvimento econômico, a mulher era um ser tratado de forma desigual e inferior”, escreveram Sueli Carneiro e Thereza Santos. Dez anos depois, em 1985, encerrava-se a Década da Mulher, mais uma vez instituída pela ONU. Dessa vez, nos reunimos em Nairóbi, no Quênia. No Brasil, como não tínhamos praticamente nada publicado sobre a população brasileira quanto a sexo, cor, trabalho, economia, classe etc., reunimos pesquisadoras, a maioria acadêmicas, para produzir um diagnóstico. O Conselho Estadual da Condição Feminina editou sete inovadores volumes, de pequeno tamanho (14 x 21 cm), mas certamente os primeiros publicados no Brasil. Dentre eles, destaco o extraordinário Mulher Negra, escrito por Sueli Carneiro e Thereza Santos.
Sueli e Thereza, duas mulheres negras, feministas, precursoras, tiveram distintas trajetórias. A vasta obra de Sueli, homenageada, publicada, desenvolve ampla pesquisa acadêmica, militância antirracista, importante participação sociopolítica para o avanço das mulheres e homens negros. A partir de dados quantitativos, Sueli demonstra como a impossibilidade de estudar e a necessidade de trabalhar desde a infância retardaram basicamente todas as oportunidades de renda, profissionalização e ascensão da população negra e, particularmente, das mulheres negras. O racismo e o sexismo têm consequências distintas sobre homens e mulheres negros e brancos. Apoiada nas reflexões de Lélia Gonzales e Heloisa Pontes, Sueli explica por que as mulheres negras não aderem ao Movimento Feminista, que, para elas, não contempla a questão racial como fundamental. Ao ignorar a cultura, o saber, as tradições, os cultos, a história e a dignidade das pessoas negras, homens e especialmente as mulheres demonstram ser fundamental um outro paradigma ao feminismo. Hoje, ao reler aquelas reflexões, vejo como foram precursoras e, passado quase meio século, não avançamos um milímetro para alcançar a igualdade de oportunidades e não superamos o racismo. A múltipla obra de Sueli Carneiro responde e demonstra.
Quando reflito sobre essas duas autoras negras que analisaram as barreiras do racismo, me pergunto o que aconteceu com Thereza Santos, que desapareceu do cenário mediático. Busco resposta em sua autobiografia: Malunga Thereza Santos: A história de vida de uma guerreira.
Thereza nasceu no Rio de Janeiro e passou a infância no que ela descreve como“uma espécie de quilombo”. Viviam todos juntos, em habitações contíguas, muitas mulheres, a chefia era do avô ou do tio-avô. Sua consciência de menina negra se dá quando se mudam para o Engenho Novo, bairro de pequena classe média, com muitos brancos. Lá tudo ia bem, ela era a verdadeira “negrinha de alma branca”, mas, se brigava, era chamada de “tziu”, “macaca”. Escondida dos pais, aos 12 anos, começa a frequentar a escola de samba e a favela. O preconceito de classe vai se avolumando e, quando é convidada a participar do elenco de Orfeu da Conceição, a mãe lhe aplica uma surra pois “aquilo não era ambiente para ela”. O racismo e o preconceito de classe, como se vê, têm muitas faces.
Ao entrar para a Faculdade Nacional de Filosofia, se junta à UNE e ao Centro Popular de Cultura (CPC). Retorna ao teatro, agora de rua, o palco é em terminais de ônibus ou estações da Central do Brasil. Mas, no Brasil conservador, teatro era ação subversiva; a polícia caça atores, impedindo-os de usar o espaço público. Decidem construir um teatro, e arrecadar fundos passou a ser uma atividade constante de Thereza — aliás, como mostra toda a literatura, essa era uma das atividades habitualmente atribuídas às mulheres, seja nos partidos políticos ou nos movimentos sociais. Excluídas das reuniões deliberativas ou das direções partidárias, lembremos de Zuleica Alambert, única mulher do Comitê Central, expulsa por Prestes, quando quis introduzir a questão da mulher. Com ironia, Thereza conta que ela e Jorge Coutinho davam uma “pitada de cor” naquele mundo branco e “socialista” da UNE. Ignorados na época, ela constata que, mesmo hoje, nos documentos da UNE, a presença dos três negros militantes não está registrada. Nem Haroldinho de Oliveira, que faleceu em 2003 com a bala ainda em seu coração, consta, pois, “na verdade, para essa gente nós éramos invisíveis”.
Apesar de desacreditada pelo partido, Thereza inclui na Mangueira aulas de reforço em português e matemática, pintura e teatro. Acho que Thereza não chegou a avaliar seu relevante papel para a comunidade quando descreve seu passeio para o centro da cidade:
“No dia que descobriram a escada rolante no Edifício da Central, tive de subir com eles trilhões de vezes, dividindo os grupos até se cansarem da novidade e voltarmos para o morro […] Quantas vezes hoje ouço jovens da periferia dizerem que vivem ‘do outro lado da ponte’ […]”
A intensa perseguição da polícia culmina num recital de poesia de Paulo Autran — no qual Thereza escapa de um tiroteio. Foge para São Paulo em 1969. Atua na TV Tupi, retoma amizade com intelectuais e políticos africanos como Eduardo de Oliveira e Oliveira, aprofunda a paixão pela arte, pela África, pela literatura e mais uma vez tem de fugir. Consegue asilo político com Flavio Proença, responsável pelo Partido Africano pela Independência da Guiné-Bissau e Cabo Verde.
Embarca para o Senegal, três dias depois vai para Alto Casamance, onde vai se defrontar com um cenário de guerra, destruição e vingança do colonizador. Centenas de crianças sem família; falta tudo, casa, água, comida, camas, médicos, remédios, epidemias, mortalidade. Na babel de grupos, várias línguas são faladas, e o teatro ajuda a recuperar a história apagada. Thereza ensina poesia, teatro, música e leva as crianças para o Senegal, para a Guine Conagry e para a Guiné-Bissau, com chuvas, sem comida, mas com o entusiasmo da libertação.
Novos governos, novos presidentes, ministros, e visitam Luanda, Angola. Emergem nações independentes que disputam poder, lutam pela hegemonia partidária, acirram- se grupos de interesses. O clima se torna fatal, guerras internas, morte de jovens e as disputas estendem-se às aulas de Thereza. O racismo é uma arma para vários grupos políticos: Thereza é pressionada a excluir duas alunas, uma branca — por ser branca — e outra “cabrita” (filha de mulato claro com branca). Preconceito de cor em plena nova África! Thereza resiste a excluí-las, e não demora é impedida de participar de uma festa de despedida de um companheiro cubano, “por não ser angolana, e suas duas colaboradoras não podiam por serem brancas!!”.
Confrontar-se com o preconceito, o racismo, é insuportável para essa mulher que deixara o Brasil racista, desigual, misógino. Thereza decide partir e informa ao partido. “Você vai deixar Angola?”, lhe perguntam. Irredutível, é presa. Thereza escreve: “nunca fiquei sabendo o porquê da prisão”.
Foram três meses e alguns dias de prisão que me abstenho de descrever. E, num dia 25 de junho, foi libertada, colocada num avião, sem documentos, roupa, dinheiro, “traída pelo MPLA”. “Cheguei ao Rio despedaçada, me sentindo violentada, principalmente porque acreditei durante anos (desde a década de 1960) no MPLA, na luta pela emancipação do povo de Angola”.
Em São Paulo, Thereza encontra velhos e novos malungos; todos os companheiros na luta pela causa negra. Dalmo Ferreira, Oscarlino Marçal, Tia Wanda, Aristides Barbosa, todos ligados ao Movimento Negro. Durante algum tempo, Thereza foi conselheira do Conselho Estadual da Condição Feminina (CECF), atividade voluntária, portanto sem remuneração. No CECF, desconhecíamos todo seu passado político, lamentavelmente. Nunca soubemos sobre as dificuldades financeiras e de saúde que ela atravessava.
Hoje, há um mote entre as feministas: “uma sobe e puxa a outra”. A ideia simboliza um movimento de apoio. E isso realmente acontece com a ascensão acadêmica de uma mulher negra, como a professora Petronilha B. Gonçalves e Silva. Ela vai propor a história de Thereza Santos como tema a ser incluído nas Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação das Relações Étnico-Raciais e para o ensino da História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. É assim que Thereza nos conta suas lutas, sucessos e decepções, que se somaram à luta antirracista e pelos direitos humanos para todos e todas. A vida de Thereza é um testemunho que precisa ser resgatado. E o livro finalmente se concretiza quando outra mulher negra, Matilde Ribeiro, se torna ministra da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, entre 2003 e 2008.
Thereza Santos faleceu em 2012, aos 82 anos.
Agradeço a Albertina Costa as importantes sugestões para este texto.
_______________
(As opiniões expressas pelos articulistas do Jornal da USP são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem opiniões do veículo nem posições institucionais da Universidade de São Paulo. Acesse aqui nossos parâmetros editoriais para artigos de opinião.)